Como boa parte da classe artística (e não apenas ela, diga-se de passagem), Maria Ribeiro se posicionou publicamente contra a eleição do então candidato a presidência da república Jair Bolsonaro em 2018. Em Outubro (2019), documentário dirigido em parceria com Loiro Cunha, ela aparece fazendo corpo a corpo com eleitores indecisos às vésperas do pleito, além de tentar entender a que ponto chegamos como coletividade para eleger um representante cultor da truculência e pouco sensível à diversidade do tecido social brasileiro. Mais conhecida como intérprete – venceu o Prêmio Guarani do Cinema Brasileiro de Melhor Atriz por Como Nossos Pais (2017) – ela aqui realiza seu terceiro longa-metragem na condição de realizadora, sendo os precedentes Domingos (2011) e Los Hermanos: Esse É o Só o Começo do Fim da Nossa Vida (2015). Conversamos com Maria Ribeiro brevemente por telefone para compreender um pouco mais sobre o porquê do projeto, entender determinadas escolhas narrativas e saber seu balanço sobre o atual governo. Confira mais este Papo de Cinema exclusivo.

 

Maria, porque te pareceu importante, especialmente na primeira metade do filme, discorrer acerca do método, dos dispositivos e das tentativas?
Porque gosto desse tipo de documentário que incorpora a feitura. Tenho dificuldade diante de exemplares com super roteiros, entrevistas previamente muito organizadas, que você nota a produção por trás. As minhas entrevistas foram marcadas de um dia para o outro. A primeira coisa que tínhamos era aquilo da noiva, que começou no movimento Ele Não. Diferentemente do “sim” do casamento, queria me vestir assim para dizer Não. E o Jair Bolsonaro comprou briga com as mulheres desde sempre, né? O próprio casamento está na revisão dos valores proposta pelo feminismo. Na medida em que comecei as entrevistas, isso foi perdendo a importância para mim. Tenho a noção de que esse filme precisa ser decantado. Ainda não sei exatamente o que ele é, e acho isso muito bom. Não necessariamente preciso entender tudo o que vejo de arte. Simplesmente precisava fazer isso, senão iria enfartar (risos).

 

No começo você aparece vestida de noiva numa manifestação dos partidários de Jair Bolsonaro. Além da citada hostilidade na rede, você sofreu algo naquele dia? Qual era a sensação de estar ali?
Fui muito xingada. Não usei isso no filme porque não queria me colocar no papel de vítima. Mas houve momentos de sentir medo real. Em certa hora, cerca de quinze pessoas se juntaram à minha volta e foi preciso um casal bolsonarista me defender para não acontecer algo. Estive no limite do medo, com aquilo do coração batendo forte.

 

Todas as pessoas com as quais você conversou entraram no corte final ou alguém ficou de fora?
Duas pessoas ficaram de fora. Um deles foi meu irmão, que estava junto com o Paulo Betti naquela cena doméstica. Meu irmão é muito petista, e eu não queria fazer algo panfletário, por mais que fique claro meu voto no Fernando Haddad. E outro que caiu foi o Mário Bortolotto, pois ele acabou falando mais especificamente de teatro.

Maria com a amiga Martha Nowill

No início você menciona que gostaria de fazer um híbrido entre ficção e documentário. Todavia, as construções puramente ficcionais não vingam. A que você atribui isso?
Cara, a realidade ali era violenta. Não queria que o filme fosse pesado. Meu desejo inicial era falar de vários relacionamentos, então tinha aquilo de nós duas na manifestação vestidas de preto e branco. Minha intenção era falar de coisas privadas dentro de um caos público. O plano inicial era filmar o documentário e depois incorporar as cenas ficcionais que eu estava escrevendo sobre encontros e reencontros. Mas, a realidade se impôs. Tive de deixar a beleza para outros momentos, como aquilo do Ravel (Andrade) cantando, o tipo de respiro que eu pensava ao imaginar a inserção de dados ficcionais.

 

Como se deu a colaboração com seu codiretor, o Loiro Cunha?
Na verdade foi quase sem conhece-lo previamente. Tinha visto um material do Loiro em alguma coisa do Caetano Veloso, acho que quando teve aquele show no ABC. Sou muito amiga do Júlio Andrade, cunhado do Loiro. Achei o trabalho dele interessante. Vi algo no Instagram, gostei e o convidei. O filme foi feito todo nessa porralouquice. Conheci o Loiro três dias antes de começar a filmar. Gosto de trabalhar junto. Como pensei que estaria mais diante das câmeras como atriz, não queria ficar dirigindo. Nos demos muito bem, a câmera dele é bem delicada.

Seu filme se coloca absolutamente contra Jair Bolsonaro. Passados quase 10 meses do governo, qual o balanço que você faz dele? Que tipo de filme você faria desse período?
Nunca imaginei que estaríamos tão mal. Meu estado na eleição era de pânico, mas, por exemplo, quando o Marcelo Rubens Paiva fala do medo de seus livros irem para a fogueira, achei que ele exagerava. Hoje em dia eu não teria poesia para fazer o filme. Em nenhum um momento acreditei que tínhamos chance de virar aquele cenário eleitoral. Entretanto, acho bonita a luta mesmo quando sabemos que vamos perder. Nesse sentido, o Vira Voto foi lindo. Meu estado atual de tristeza é grande. Não sei se hoje em dia poderíamos perder tempo fazendo esse registro. Acho que agora é a hora da ação. O que eu posso fazer nesse momento, diante de tudo isso, é colocar o meu filme na rua.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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