A conversa de hoje é com o crítico Humberto Pereira da Silva, a quem aproveito para agradecer pela valiosa contribuição. Humberto estudou filosofia e é professor universitário na FAAP (FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO), onde leciona filosofia, ética e crítica. Escreve sobre cinema desde 1998. Nesse período, publicou críticas e ensaios sobre cinema em revistas impressas, Revista de Cinema e Sinopse, e revistas digitais, Trópico, Filmes Polvo e Digestivo Cultural. É autor do livro “Ir ao cinema: um olhar sobre filmes” (Musa Editora) e escreveu um perfil biográfico de Glauber Rocha, que aguarda publicação.
Como nasceu em você a paixão pelo cinema?
Durante a infância, antes de completar quatorze anos no final da década de 70, eu vi muitos filmes na TV. Eu acompanhava pelo jornal a programação diária, lia as sinopses dos filmes, me familiarizava com informações, com o nome de diretores, estúdios, ano de lançamento de um filme. Ficava até tarde da noite para ver um western. Audie Murphy era meu ator favorito. Aguardava ansiosamente, também, os filmes de Tarzan, principalmente os estrelados por Gordon Scott. Além de western e Tarzan, tinha fixação por seriados como Roy Rogers, Zorro e Túnel do Tempo, comédia slapstick, O Gordo e o Magro, Chaplin. Por volta dos quatorze anos, ainda na TV, comecei a ver filmes japoneses, Kurosawa, e italianos, Rossellini, que passavam no começo da madrugada na extinta TV Tupi. Minha paixão pelo cinema nasceu com a TV. Num tempo em que não havia vídeo cassete, eu via muita televisão, três ou quatro filmes por dia.
Qual é o sentido de ser crítico nos dias de hoje?
Veja que não só via muitos filmes como também lia sobre cinema. Causa-me incômodo ouvir as pessoas falarem de filmes, mas não terem ideia do que foi escrito sobre eles, nem qualquer preocupação com informações sobre diretores, produção etc. O crítico, em qualquer forma de expressão artística, abre espaço para discussão, para que, no caso do cinema, um filme não fique confinado ao mero entretenimento. Ontem, como hoje, o sentido do exercício crítico é se servir de mediação entre a obra e o público, oferecer perspectivas de percepção que escapam ao olhar menos atento. Num sentido mais amplo, a crítica tem o papel de iluminar detalhes despercebidos e não se confinar à expressão de subjetividades. Gosto pessoal, para mim, não tem qualquer importância, quando alguém se dispõe a fazer crítica, e sim saber como um filme é refletido. É nesse instante que a questão de gosto sai da esfera da subjetividade e abre espaço para a discussão do valor de um filme como objeto artístico e cultural.
Qual sua posição frente a nova crítica de cinema, que germinou na era dos blogs e das revistas virtuais?
Eu sou entusiasmado pelas possibilidades criadas pela internet. Blogs e revistas virtuais são expressões de nosso tempo. É preciso ter isso em vista em qualquer discussão sobre esses meios de comunicação. Hoje pessoas de talento não podem dizer que não têm espaço para se expressar. Ocorre que a internet abre possibilidades praticamente ilimitadas. Com isso, um risco muito grande de dispersão. Não é possível minimamente acompanhar o que acontece. Se eu ficar boa parte do dia na frente do computador, vou achar um blog ou uma revista interessante que desconhecia. Com isso, é inevitável que me escape muito do que essa nova crítica possa escrever de interessante. Agora, a esse respeito vale também fazer uma ressalva: o espaço virtual dá margem a que se escreva muita bobagem. Abrir um blog desconhecido é sempre um risco.
Como vê o academicismo de certas linhas de pensamento na crítica cultural? Acredita que a dissecação de um filme, tornando a análise o mais objetiva possível, tende a enfraquecer a importância da análise subjetiva?
A crítica de cinema em jornais e revistas é um trabalho rápido, a partir do contato imediato com o filme. Nesse trabalho conta a experiência, condicionamento para perceber imagens e formar juízos, lastro cultural para fazer matizes apropriados, certa intuição para perceber sinais. Enfim, é um trabalho de risco, pois feito no calor da hora. Por isso, acho fundamental que o crítico expresse uma visão geral sobre como entende o cinema. Assim, fica claro o que para ele é importante no cinema. Saber como um crítico pensa me leva a entender as razões que o levam a gostar ou não de um filme. As bobagens que vejo em blogs invariavelmente ocorrem quando percebo que quem escreve vê um filme como tabula rasa. Quanto à análise feita em âmbito acadêmico, o que tenho a dizer é que é outra esfera de atuação. Dissecar um filme, fazer análise estrutural, semiótica, é um trabalho árduo, de longo tempo, nenhum pouco intuitivo, com jeito de que se está diante de um experimento científico. Mas necessário, pois a crítica rápida em jornais e revistas, pela sua natureza, passa ao largo das questões de fundo que muitos filmes propiciam. Um filme como Persona, de Ingmar Bergman, não tem como ser esgotado num texto para amanhã.
Quais são seus críticos de cinema favoritos? Os de outrora, que influenciaram ou ainda influenciam seu trabalho, ou os de agora, que acredita sustentarem com talento a causa da crítica de cinema?
Tenho predileção pela crítica francesa. Aprendi muito com Alain Bergala, Jean-Michel Frodon, Serge Daney entre outros; hoje, leio com prazer Jean-Philipe Tessé. Não aprecio a crítica americana. Leio Pauline Kael ou Jonathan Rosenbaum e não me afino com a visão de cinema que exibem. Ainda que tenham “sacadas” interessantes, no geral suas críticas não servem de referência para eu compreender o valor de um filme. No Brasil, dos antigos o que mais me estimula é o José Lino Grünewald; hoje os críticos mais lúcidos e inteligentes são o Luiz Zanin e o José Geraldo Couto: lê-los me faz pensar.
É célebre a história de Antonio Moniz Vianna parou de escrever quando da morte de seu maior ídolo, John Ford, pois acreditava que nada tinha mais a acrescentar como pensador diante da crise criativa contemporânea. Qual diretor cuja morte já lhe provocou semelhante desalento?
John Ford morreu em 1973. Moniz Vianna fechou os olhos para grandes obras de Andrey Tarkovski, Wim Wenders, Werner Herzog, Theos Angelopoulos; ele não viu Barry Lyndon (1976), de Stanley Kubrick, para ficar nesses nomes dos anos 70. Quando vejo Bella Tarr, Apichatpong Weerasethakul, Nuri Bilge Ceylan sinto o quanto de bobagem se pode sustentar com o slogan “crise criativa”. Moniz Vianna tinha os olhos fechados para certo tipo de cinema. Não por acaso, não enxergou Glauber Rocha: numa lista dos dez melhores filmes brasileiros, coloca Deus e o Diabo na Terra do Sol em décimo; na sua frente, dois filmes de Jorge Ileli, Amei um bicheiro (1953) e Mulheres & Milhões (1961). A história do Moniz Vianna é triste para alguém que exerceu como ele a crítica de cinema. Não o tomaria por exemplo.
A perda de espaço de textos críticos nos veículos impressos é sintoma da falta de interesse público, ou a busca ávida dos veículos pela adequação a tempos de pouca reflexão?
A pergunta sugere que antes havia mais interesse público pela crítica de cinema, logo maior espaço nos veículos impressos. O espaço encolheu, nisso reflexo de um tempo com pouca paciência para reflexão: vivemos a época da objetividade sem objetivo. Mas, veja, a pouco falei da imensa proliferação de blogs e revistas virtuais. Seria contraditório agora dizer que há falta de interesse quando muitos que antes eram apenas leitores agora escrevem. Quer dizer, são situações bem diferentes, meios e motivações diferentes. Mas, sinceramente, não creio que o público que antes lia crítica de cinema fosse maior e mais interessado que o de hoje. O que havia, sim, era uma disposição maior para um texto longo.
Discutir “comércio versus arte” ainda é válido quando percebemos qualquer cinematografia?
Cinema, todos sabem, envolve muito dinheiro. Não é fácil colocar um filme cartaz, como se diz. O filme mais barato envolve captações, todo um jogo de convencimento sobre sua viabilidade comercial. Não é possível pensar o cinema fora dos contornos da indústria cultural, tema caro ao filósofo frankfurtiano Theodor Adorno. Esquecer que um filme se insere no mercado, uma forma mercadoria, portanto, é ingenuidade. A discussão sobre bilheteria, política de captação de recursos, quantidade de filmes produzidos e lançados anualmente no circuito têm esse viés. Agora, um filme pode não se destinar exclusivamente à satisfação no jogo com penduricalhos que circulam no mercado. Como em outras formas de expressão artística, o cinema lega obras que marcam, assinalam um momento na história cultural. Carlota Joaquina (1995), da Carla Camurati, nas circunstâncias, foi bem sucedido no jogo do mercado, mas hoje nós nos lembramos dele porque foi um marco na chamada Retomada do cinema nacional. O que creio ser importante separar é o viés meramente mercadológico dos sinais que indicam por que um filme pode ser lembrado no futuro. Mais, se a discussão se restringir a bilheterias, agradabilidade do público, perde-se de vista o cinema como expressão artística e veículo que transmite a cultura de uma época.
Como vê o cinema brasileiro atual?
Há uma preocupação indisfarçável de muitos produtores, diretores em inserir seus filmes no mercado, buscar bilheteria, firmar-se, enfim, conforme as exigências de produção em escala industrial. É esse o sentido que creio devem ser entendidas comédias recentes como Agamenon, Reis e Ratos, Billi Pig, mesmo O Palhaço, do Selton Mello, ou poucos anos atrás Os Normais. Essas comédias, interessante observar – falávamos antes de espaço –, ocupam uma atenção razoável da crítica. Além das comédias, insiro nessa lista o recente Xingu, do Cao Hamburger. Mas vale notar que há outro tipo de cinema que, para mim, ainda não tem merecido a devida atenção. Refiro-me ao que fazem diretores como Cao Guimarães, Thiago Mata Machado, Sergio Borges, Erik Rocha. Essa, digamos assim, uma geração com propósito ousado, sem preocupação primeira com bilheteria, que circula em festivais importantes e que exige um olhar menos imediatista. O que fizeram até aqui me entusiasma. Para mim é o que há de melhor no cinema brasileiro atual.
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Parabéns pela entrevista!