29 out

O Século da Fumaça :: Entrevista exclusiva com Nicolas Graux

Dentro das florestas isoladas do Laos, existe um problema crônico que escapa às autoridades locais e à atenção do jornalismo mundial: a única fonte de renda das famílias se encontra na produção do ópio, que condena a maioria das famílias à pobreza ao vício. Quando a droga se torna proibida pelo governo, eles caem na clandestinidade, sem perspectivas de saída.

Este é o ponto de partida de O Século da Fumaça (2019), fascinante documentário dirigido pelo belga Nicolas Graux, e exibido no Brasil durante a 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (leia a nossa crítica). Ao invés de uma narração expositiva, o cineasta privilegia o registro das sensações, retratando tanto o torpor da droga quanto a dura vida cotidiana da família de Laosan, com filhos pequenos. O Papo de Cinema conversou em exclusividade com Graux sobre o projeto:

O diretor Nicolas Graux

Como conheceu este vilarejo, e esta família em particular?
Foi um longo processo. No início, foi algo intuitivo. Estava viajando pelo sudeste asiático, e chegando ao Laos, decidi mudar meus planos para ficar, porque não queria sair de lá, e ainda sentia falta de compreender realmente aquelas pessoas. Algo me obcecava na monotonia das paisagens. Às vezes, era preciso percorrer doze horas de ônibus para chegar a algum lugar, então toda a espera me interessava, além de se tratar de um lugar pouco conhecido, sobre o qual não se fala muito. O Laos é vítima de uma forte ditadura, As pessoas não têm acesso à mídia, e sua voz não é ouvida. Comecei a aprender um pouco da língua, quando ainda estava na Bélgica, para me comunicar melhor e ir mais a fundo nos encontros.
Pela Internet, procurei imagens de satélite da floresta para localizar os vilarejos mais isolados, e para descobrir como chegar de um vilarejo ao outro. Então, ano após ano, eu visitava o Laos, caminhando sozinho na floresta e dormindo nos vilarejos, enquanto conhecia as pessoas. Ainda não tinha pensado em fazer um filme, havia apenas um desejo de cinema prestes a nascer. Emocionalmente, algo irracional me ligava a estes espaços. Por exemplo, a imagem da fumaça sobre as casas durante a noite me despertava uma sensação de pertencimento, mesmo este sendo um lugar ao qual eu obviamente não pertenço. Eu sentia que tinha raízes lá, e precisava explorar esta introspecção e a compreensão de meus próprios sentimentos. Foi a partir disso que surgiu a ideia de um filme: ao mesmo tempo, entrar numa realidade diferente e entrar numa introspecção, para compreender como estas duas viagens ocorrem em paralelo.

Como os habitantes locais receberam a sua presença? Eles não parecem ter contato com muitos estrangeiros.
Quando encontrei esta família, em 2012, conheci primeiro Laosan, o protagonista do filme. Senti que deveria ficar lá, com aquela família, se possível. Havia algo magnético neste jovem, com todas as suas falhas e dúvidas existenciais. O fato de ele estar um pouco descolado da própria família e do mundo ao redor estabelecia um contato comigo mesmo, como uma espécie de espelho deformado. Neste encontro com ele, senti algo que mexia profundamente comigo. A família me recebeu muito bem, e passei três semanas apenas com ele, vendo o tempo passar. Aos poucos, eu compreendia as diferentes dimensões desta realidade: os laços familiares, os conflitos entre pessoas, a dependência econômica e física do ópio. Estas relações fortes criaram um universo de sensações que eu viria a tentar traduzir em um filme. Mas este é um processo intuitivo: nunca cheguei naquele espaço pensando em fazer um filme sobre o ópio.

Você nunca quis filmar as outras famílias, em diferentes vilarejos ao redor?
Eu explorei os outros vilarejos, e fiquei neles também. Mas foi o encontro com Laosan que cristalizou a vontade de fazer o filme. Senti que ali seria possível concretizar o projeto, e assim nasceu uma relação de confiança com o passar do tempo, o que exigiu muita paciência. Entre o primeiro encontro e o desejo de começar o filme, quatro anos se passaram. Esse tempo foi necessário para que eu imergisse de fato naquele espaço, sem o olhar do estrangeiro. Queria ser fiel à realidade deles, olhando do interior, sem preconceitos. Eu precisava estar aberto à realidade para falar de algo tão delicado quanto o ópio e a posição de extrema marginalidade deste povoado. Eles são ignorados pelo governo, e buscados pelas autoridades. Além disso, existe o fato de que estão muito conscientes dos danos que o ópio produz neles mesmos e em suas famílias. Isso cria um sentimento de vergonha profundo.

Como eles aceitaram a proposta do filme? A família impôs alguma restrição às filmagens?
Eu me confrontava a limites éticos diariamente, a cada vez que colocava a minha câmera em algum lugar. O tom das filmagens era essencial, e por isso foi importante, inclusive, que a equipe tenha sido tão reduzida. Retratar o ópio representava uma dificuldade pela vergonha e pela consciência da ilegalidade, mas a partir do momento em que fomos aceitos, as possibilidades se abriram. Tivemos muitas dúvidas e instantes de insegurança. Em determinado momento, eu nem sabia se a questão do ópio entraria no filme. O fato de chegarmos de um país diferente, com equipamentos que eles nunca viram antes, demanda tempo para se acostumarem.
Tentamos ser o mais transparentes possível: eles viam o que estávamos filmando com frequência. Aos poucos, algo genial aconteceu: eles compreenderam que poderiam ter uma parte ativa na criação do filme, e passaram a me sugerir cenas. A longa cena de reunião do filho com o pai, quando o patriarca sugere abandonar o vilarejo, foi sugerida pelos pais. Eles vieram me ver e pediram: “Precisamos muito falar sobre isso com o nosso filho. Já pedimos a ele algumas vezes, mas acho que fazer uma cena para o filme vai trazer mais peso à nossa palavra”. Para mim, isso trouxe um valor inestimável: além de eu chegar a uma realidade e apreender as coisas, eles mesmos se apropriaram da ferramenta do cinema e perceberam que, através dela, poderiam dizer coisas que nunca disseram antes. Isso ocorreu com as mulheres, quando se reúnem para compartilharem seus traumas.

Esta cena é curiosa, por ser um encontro apenas entre mulheres, para dizer toda a dor que os homens lhes causam. E você, um homem, estava ali presente, filmando.
As reuniões entre mulheres do vilarejo ocorrem de maneira informal com frequência. Mas para o filme, sugerimos que elas se reunissem. Conversamos com as mulheres de quem éramos mais próximos, e propusemos o encontro. A maioria delas aceitou. Pedimos apenas que falassem sobre a situação de suas famílias, em total liberdade. Dentro do contexto do filme, sabíamos que o que seria dito ali dentro jamais seria exposto ao resto da comunidade. Isso ficaria entre nós. Algumas delas entraram no jogo, mas eu jamais saberia que elas falariam daquela maneira, com palavras tão graves. Eu jamais poderia ter escrito algo assim. Quando a realidade oferece algo do tipo, isso é muito mais forte do que a ficção jamais poderia construir.

Você tinha um roteiro preconcebido, ou a estrutura do filme nasceu na montagem?
Não existe roteiro nenhum. Eu não tinha nenhuma rede de segurança. É claro que, para conseguir o financiamento do filme, precisei fazer vários relatórios e descrições de cenas que permitiam às pessoas imaginar a obra e confiar o dinheiro. Mas quando chegamos no vilarejo, diante da realidade das pessoas, o texto escrito é jogado pelos ares, e mantemos apenas as linhas diretivas. É preciso estar atento ao acaso, às coisas que acontecerem na hora e que vão de encontro com minhas ideias. Este é um trabalho do tempo presente: escolher onde posicionar a câmera, o que enquadrar, e principalmente, o que deixar fora do quadro. O que vemos na imagem, o que escutamos? Como algo evocador pode nascer da imagem? Esse trabalho exige muito cuidado quando se capta o tempo presente. Tentamos ser verdadeiros e justos, e dá para perceber quando isso acontece, tanto na filmagem quanto na montagem.
Mas quando estou filmando algo, não sei se vai aparecer no início ou na conclusão do filme. Esta escolha ocorre apenas na montagem. Um filme como o nosso exige muito tempo de montagem até encontrar uma estrutura, porque não temos um caminho narrativo claro, indo de um ponto A a um ponto B. É preciso tomar o tempo de trabalhar os questionamentos internos do espectador ao longo do filme. Este caminho funciona por camadas: estamos diante de uma situação crônica, e aos poucos compreendemos os detalhes, as motivações e os conflitos. Mas tento trabalhar isso num espaço de sensações: é mais importante que o espectador sinta aquele espaço do que o compreenda. Para mim, o grande desafio era não permanecer num olhar antropológico ou descritivo, e sim encontrar uma linguagem para as sensações, para captar a textura do tempo, a lentidão do tempo que passa, a claustrofobia de se encontrar dentro desta floresta imensa, e sentir a chuva, o calor.

Você parece ter um controle estético impressionante diante de cenas cotidianas difíceis de controlar.
Existe pouco controle de fato, eu busco apenas estar atento ao que acontece. Na cena com a chuva, as galinhas e a família atravessando o campo, foi sorte. Nós criamos condições que me permitiram captar o que estava acontecendo com precisão. Colocamo-nos numa receptividade extrema a tudo o que acontecia. Neste mesmo dia, por exemplo, começou a chover muito forte e decidimos colocar a câmera fora de casa. A mulher saiu com o bebê e, por sorte, ela estava dentro do enquadramento. Em determinados momentos, pedimos aos moradores para refazerem algum pequeno movimento, como entradas e saídas do enquadramento. Isso foi possível porque eles entraram no trabalho, e sabiam como o procedimento funcionava. Decidimos, às vezes no dia seguinte, refazer uma cena quando julgamos que ela não tinha ido longe o bastante na filmagem anterior. Por isso é preciso muito tempo.

Os personagens assistiram ao filme? Como reagiram?
Ainda não. Enquanto filmávamos, eles costumavam assistir ao material e achar tudo muito engraçado. São pessoas que nunca se viram numa tela, numa imagem antes. Mas usamos isso para fazer com que eles compreendessem o trabalho e entrassem na rotina da filmagem. A realidade deles é complexa: a situação é trágica, mas existem muitos momentos de alegria. No filme, conseguimos captar alguns deles, também sem controle. Eu ainda não pude voltar ao vilarejo desde que concluí o filme. É impossível manter contato com eles: como estão isolados no meio da floresta, não existe telefone nem Internet lá dentro. A única maneira é ir até lá.
Mas eu não poderia mostrar a versão finalizada para a comunidade, pelo menos não agora, porque eles me disseram algumas coisas que eu não poderia tomar a responsabilidade de expor a todo mundo. As mulheres me disseram coisas que eu não poderia revelar aos maridos. Talvez com uma boa preparação, e um bom trabalho pedagógico por meio do meu intérprete, eu possa vir a exibir o filme por lá. Mas seria preciso criar um contexto. Hoje, penso sobretudo em retornar por amizade, mostrar alguns fragmentos selecionados do filme, quem sabe uma montagem diferente, mais longa, com outras cenas que fizemos juntos. Sei que eles não estão à espera de um resultado particular. Para eles, o importante era travessia que fizemos juntos, mas não se importam para o filme. No ocidente, enquanto diretor, tenho consciência de que só nos importamos com o resultado final.

Quais serão os caminhos de distribuição e exibição para este filme tão singular?
Não vai ser fácil. O filme aborda uma problemática que ninguém conhece, que não está presente na mídia. Não é um documentário sobre um tema urgente da atualidade. Ele já enfrenta dificuldades no circuito de festivais, e encontrará ainda mais para ser distribuído, porque traz o olhar sobre uma realidade desconhecida. Ao mesmo tempo, pela experiência que tive em festivais, interagindo com o público após a sessão, sei que as pessoas conseguem se identificar com esta comunidade. Os espectadores encontram problemas familiares ou de vício semelhantes aos deles. A melancolia em relação ao futuro conversa com muitas pessoas. Quanto mais específico for o recorte, mais conseguimos projetar a nossa própria experiência. Mas vai ser difícil distribuir o filme em salas, porque o circuito precisará sair da tendência a valorizar apenas os temas mais midiatizados do momento. Vamos tentar lançar na China, porém vai ser muito difícil no Laos, por causa da ditadura. Além disso, o filme foi feito sem autorização – ele jamais teria recebido autorização para ser feito. Mesmo assim, vamos tentar lançá-lo no sudeste asiático, sem dúvida.

 

Bruno Carmelo

Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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