Simone Cortezão partiu de sua pesquisa teórica sobre paisagens produtivas para desenhar uma trilogia cinematográfica. A primeira parte, o curta-metragem Subsolos (2015), se passa numa mineradora. Já a segunda, Navios de Terra (2017), integrante da mostra competitiva do 6º Olhar de Cinema, transcorre num navio cargueiro rumo à China. Protagonizado por Rômulo Braga, o longa-metragem exibe uma visão poética acerca de espaços de trabalho distantes da visão cotidiana das grandes urbes. Presente no evento paranaense, o Papo de Cinema teve uma conversa exclusiva com a cineasta, na qual ela discorreu sobre os processos da produção, a colaboração dos atores e o hibridismo da narrativa, que permite a convivência entre a realidade e ficção. Confira!
Navios de Terra tem visual e som fortes. Seu filme foi pensado para a tela grande?
Quando comecei a fazer essa trilogia, cuja primeira parte é o curta-metragem Subsolos, pensei no scope (tela larga) para a gente conseguir minimamente dimensionar a imensidão desses lugares. A decisão pelo scope não foi à toa ou somente pela beleza, mas para criar uma espécie de imersão. Eu penso que no cinema o filme se realize melhor, mas, claro, dentro do que é o Navios de Terra eu não tinha uma decisão dele só passar em cinema, porque as pessoas podem querer ver essa pesquisa no celular, na internet. Mas, sim, foi pensado conceitualmente para o cinema, porque acho que ali ele se resolve melhor enquanto proposta de trazer essas paisagens imensas onde a economia é efetiva.
Ainda sobre a imagem, como foi o trabalho com o fotógrafo Matheus Antunes?
Começou no Subsolos, a gente falando um pouquinho sobre pinturas, o tempo da imagem, principalmente a duração dos planos, e isso é o que propiciava o silêncio, a experiência do lugar. São paisagens, costumo dizer, que estão em estado de coma, pois elas mudam constantemente, mas tem uma espera. Conversei muito com o Matheus a respeito disso. Eu tenho uma pesquisa teórica sobre as paisagens produtivas, fiz um doutorado sobre elas, então a gente tinha uma conversa para além da própria fotografia. Falamos dessas sensações, de como inserir o protagonista num plano de fundo que também seria personagem. Continuamos isso no Navios de Terra, um filme de guerrilha, com pouquíssima gente na equipe, porque eu achava que tinha de ser, não somente pelo orçamento, mas para adentrar nesse lugar sem uma grande produção.
O som também desempenha um papel importante…
Com certeza, o som é bastante importante. Queríamos essa coisa de trazer o som como uma bolha, que leva a gente junto, para além daquilo que a fala diz. Buscamos uma experiência que não está na vivência urbana, a desses espaços de borda onde as coisas acontecem, mas a gente não vê nunca. Então, tentamos inserir o espectador nesse mundo com imagens e sons que extrapolam um pouco o plano do personagem, que abarcam o entorno. Não sei se a gente alcança, mas é uma busca por profundidade.
Fiquei com a impressão de que você busca criar uma atmosfera de filme espacial, sobretudo nas interações dos personagens dentro do navio.
Esse navio está se deslocando, mas simbolicamente um pouco à deriva, sem comandante. Quando entrei no navio, e também nas instituições científicas – e eu gosto muito de fazer essa pesquisa de locação, é uma das coisas que eu gosto –, me deparei com ambientes assépticos e vazios. Talvez a gente tenha como referência de espaços semelhantes a nave, mas eu estava realmente pensando nessas bolhas que a economia gera, que o (Michel) Foucault chama de heterotopias. Todavia, realmente, para o espectador que gosta de cinema, o que talvez venha à mente como referência seja a nave.
Nós temos muito vivas as referências de 2001: Uma Odisséia no Espaço, de Solaris, e as dinâmicas são próximas, até pela delimitação do espaço…
É engraçado, porque essa “nave” é muito velha (risos). Aquele navio era quase um fantasma. Busquei várias embarcações e de repente surgiu essa. Para mim, há um tom meio fantasmático nesse navio totalmente velho. Inclusive os marinheiros falavam que ele tinha de parar de operar. É muito curioso constatar, ao longo da pesquisa toda, como a economia gera esses espaços. A gente começa com o McDonalds, essa assepsia, e as coisas vão ficando ainda mais geladas e distantes da ideia dos lugares que temos na cidade quando chegamos nos ambientes de produção, que são o navio, a indústria, a mineradora e o laboratório, por exemplo.
O personagem do Rômulo Braga conversa com dois marinheiros reais no filme. Gostaria que você falasse um pouco sobre esse hibridismo interessante.
Eu buscava muito uma atmosfera simbólica, mas de repente me deparei com as pessoas que viviam nessa atmosfera. Histórias ali tinham aos montes. Foi muito impressionante. Ao longo da gravação, me interessou criar um ritmo entre essa navegação e a escuta dos trabalhadores. Eu percebi que esse era o tempo do navio, que o ritmo não seria simplesmente uma questão de montagem. As pausas de bate-papo faziam parte daquilo. É quase como uma conversa gaguejada, a viagem era um pouco isso. Numa hora as pessoas não queriam interagir, mas daqui a pouco queriam. Foi por isso que entrou na história.
Em que estágio da produção você decidiu inserir as doses de realidade no filme?
Eu fiz o roteiro, uma estrutura, e fui para essa viagem. Eu sabia que ali encontraria os marinheiros, mas não em que situações. Esse é um filme realmente de pesquisa em alguns momentos, e, por coincidência, era um navio de marinheiros velhos.
Ou seja, cheios de histórias para contar…
Exatamente. A tripulação desse navio era boa parte de aposentados que voltaram ao mar por não darem conta da vida fora dele. Era uma coisa muito curiosa. Fora dos horários de produção, nós ouvíamos as histórias, algumas mais espontaneamente. Por uma questão empática, tanto eu quanto o Rômulo nos interessamos muito. Para mim era importante esse interesse do Rômulo, para além do âmbito do ator. Então, assim essas experiências foram assimiladas. Eles contavam com muito empenho aqueles episódios marcantes depois de tantos anos no mar. E acho que quando a gente está em viagem é assim, né? E isto orientou a montagem: o que assenta na memória, o que repousa em algum momento.
Como foi o trabalho com o Rômulo Braga? Parece realmente uma parceria…
O Rômulo tem uma coisa muito especial e particular, que é reagir ao espaço. Não preciso dizer para ele que há um mundo ao redor. Ele tem essa sensibilidade. Se um copo quebra durante a gravação, ele sabe que aquilo faz parte da cena. Neste filme, não controlei o exterior, as coisas estavam acontecendo, a vida do navio corria. Para além de um modo de atuar, o Rômulo relaciona a vida que transcorre e o personagem se construindo. Não acho que foi uma produção fácil, pelas condições. Mas, exatamente por essa particularidade dele, foi uma parceria super importante. Imagino que tenha sido uma pesquisa para ele, também. O Rômulo tem uma grande densidade, se arrisca. Acho isso genial.
Falando sobre riscos, vamos mencionar o mercado. O Navios de Terra já tem lançamento comercial assegurado? Como está esse processo?
Produzi o filme junto com a Ana (Moravi), mas não tinha a pretensão de que a pesquisa fosse recebida, mesmo. Eu tinha algo a ser feito, uma obstinação. Bom, mas o filme começou a circular agora os festivais, foi acolhido muito prontamente na Suiça, no Visions du Réel. A produtora vai se encarregar de encaminhar a distribuição, mas não sei dizer direito em que pé está. Acho que depois do Olhar de Cinema a gente vai sentar para ver a estratégia, a fim de entrar em outros festivais e, claro, no circuito comercial.
(Entrevista ao vivo, concedida em Curitiba em 13 de junho de 2017)
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