Felipe Bragança rechaça os rótulos. Ao invés de ficar preso a fórmulas e preconcepções, ele prefere celebrar o cinema como um todo, mesmo trafegando por caminhos incomuns. São dele os roteiros de O Céu de Suely (2006), Girimunho (2011), Heleno (2011) e Praia do Futuro (2014), para citar apenas alguns de seus trabalhos escritos mais reconhecidos. Como diretor, esteve à frente, na companhia de Marina Meliande, dos longas-metragens A Fuga da Mulher-Gorila (2009), vencedor do prêmio de Melhor Filme pelos Júri da Crítica e Júri Jovem na 12ª Mostra de Tiradentes, e A Alegria (2010). Além de diversos curtas, também dirigiu um dos segmentos de Desassossego (2010), projeto coletivo. Não Devore Meu Coração (2017), seu mais novo projeto como diretor, agora solo, estreou no Festival de Berlim, sendo exibido na concorrida Mostra Panorama. Depois de passar por vários outros eventos, abriu a histórica 50ª edição do Festival de Brasília, depois da saída da seleção do Festival de Gramado – Felipe conta que isso se deu por conta de um desencontro de informações. E foi na capital federal que o Papo de Cinema conversou com o diretor. Confira este bate-papo em que ele discorre, inclusive, sobre o lugar da fábula e dos mitos em sua criação.
Não Devore Meu Coração me remeteu diretamente ao Clown, sobretudo pela evocação dos mitos. Como se dá esse lugar dos mitos no seu processo criativo?
O Clown é esse projeto de websérie e quadrinhos, focado numa mitologia íntima a mim, a da Baixada Fluminense, onde cresci. Já no filme, utilizo uma mitologia nova, na qual fui embarcando. A fábula e a mitologia são as minhas formas de tentar acessar os espaços, sem a sensação de resumi-los ou controla-los. É um lugar de imaginação, mas também de respeito. Tenho a sensação de que por meio delas consigo me conectar, além de estabelecer harmonia entre alguns elementos e signos daquela região. Penso meus filmes muito em termos de música, no que diz respeito ao ritmo e à estrutura. Para mim, ainda, a mitologia e a fábula têm a ideia de máscaras. Nesse filme não existem máscaras, mas os capacetes são uma espécie de máscara. A menina, por exemplo, não usa máscara, mas tem uma tatuagem. É um pouco desse lugar onde as pessoas estão tentando organizar as suas próprias personalidades, a si mesmas para, depois, tentar organizar o mundo ao redor. Então, fábula, para mim, é uma forma de combate.
Aqui você utiliza, também, uma mitologia pop, oriunda dos quadrinhos, vide as referências a Batman e Superman…
Essas mitologias são todas completamente misturadas. Há certa espiritualidade nas suas memórias de infância, quando você vê um filme dublado na televisão, por exemplo, e nas memórias relativas aos super-heróis se misturando com as da religiosidade familiar. Acredito que nossa a formação espiritual é uma mescla de coisas divinas. É uma grande mistura, na verdade, que constrói essas máscaras que a gente usa. Perguntam-me sobre gêneros cinematográficos. Penso neles como máscaras anteriores à indústria do cinema. Os gêneros são máscaras que o cinema utiliza para tentar se organizar e criar como mitologia. Então, para mim, está tudo junto, referências pop, locais, folclóricas e regionais. Elas se misturam nos imaginários. O que um menino como o Joca (um dos protagonistas do filme) tem no imaginário dele? Ele tem desde as lendas sobre a Guerra do Paraguai, passando pelas histórias de religiosidade da mãe, chegando aos quadrinhos e filmes de aventura que ele vê na televisão. São instrumentos que ele utiliza para se conectar ao mundo, estão todos no mesmo lugar.
Contrapondo uma ideia de cinema realista, seus filmes apresentam ambientes em que a fábula se torna determinante. É uma espécie de elogio à própria magia do cinema, correto?
Acredito realmente muito na fábula como um lugar de afirmação política, de ocupação de um território do imaginário. Como cineasta brasileiro, latino-americano, o gesto que me interessa não é o de apresentar o real, mas o de tentar pensar o que se projeta desse concreto do dia a dia como desejo e sonho. No fundo, tenho a sensação de que em qualquer filme você está documentando pessoas sonhando. Tive uma vez essa conversa com o Apichatpong (Weerasethakul , cineasta tailandês) sobre a ideia de que todos os filmes são documentários. Nós documentamos sonhos e imaginações. Até em termos de curadoria internacional, às vezes, tenho esse tipo de embate, mas acabamos encontrando brechas para não restringir o cinema latino-americano àquele obrigado a retratar suas realidades sociais, enquanto as indústrias culturais europeia e norte-americana abraçam uma missão de inventar, de sonhar, de erigir mitologias. Deixamo-nos de fora disso. Temos de criar a nossa própria mitologia.
Você acredita que filmes como Não Devore Meu Coração quebram uma expectativa estrangeira de cinema latino-americano apenas voltado a questões de ordem social?
Acredito que sim. Entre filmes dos quais gosto muito e outros dos quais gosto menos, a massa dos latino-americanos que circula em festivais ainda é formada de retrato sociais realistas do cotidiano. Obviamente, entre eles há exemplares incríveis, minha constatação não é uma crítica. Mais de uma vez escutamos comentários sobre o Não Devore Meu Coração de que ele é um OVNI, pois um filme brasileiro que faz referência ao pop norte-americano, não como paródia, mas noutra chave, misturando-o com elementos que o público internacional talvez não entenda. Fechamos o Festival de Cartagena e a curadora, ao apresentar o filme, falou que o considerou um gesto muito punk rock de um jovem, embora não seja tão jovem assim (risos).
Há uma tendência de polarizações entre arte e entretenimento, popular e erudito. No seu filme essas instâncias parecem intercambiáveis…
Não acredito num mundo impuro. Para mim, é tudo muito misturado. Nesse sentido, as referências são todas reais, elas existem. Embarco exatamente nessas coisas, vendo o que me afeta. Às vezes, ao escrever uma cena, quero ouvir Bach, já à outra, ouço Sia. Qual a explicação? Não sei, e, francamente, não me importa. Realmente acredito num mundo impuro. Existe a ideia de um cinema mais nobre, de arte, autoral norte-americano, que seria o realista, da crônica estritamente realista. Já filmes mais pop latino-americanos estariam já diretamente conectados à ideia de um cinema mais comercial, feito para o grande público, sem interesses conceituais ou autorais.
Essa nossa visão, talvez, tenha um pouco a ver com o Cinema Novo, mas, mesmo assim, as pessoas se esquecem das alegorias presente naquele período…
Claro! Olha o Joaquim Pedro de Andrade fazendo comédias. O pessoal fala de cinema novo se restringindo aos filmes preto e branco, tipo Vidas Secas (1963), que eu amo, é bom dizer. Mas, na verdade, tantas outras coisas foram feitas no período. Fico pensando no próprio Macunaíma (1969), uma comédia pastelão/autoral incrível, maravilhosa. Então, quando alguém se refere ao Cinema Novo, geralmente acabamos restritos aos primeiros. Uma vez perguntaram ao Rogério Sganzerla qual filme ele gostaria de realizar e que nunca iria conseguir. Ele respondeu que queria fazer um filme dos Trapalhões. Para mim é isso. Imagina se o Sganzerla tivesse dirigido um filme dos Trapalhões. É esse tipo de gesto que admiro.
Essa dicotomia entre arte e entretenimento, talvez uma distorção mercadológica, é problemática, inclusive, para definir a identidade do cinema brasileiro no exterior?
Acredito que nos últimos anos alguns filmes estão tentando driblar essa divisão tão clara. Tem uma questão, obviamente, que é prática de produção. Quando você vai arrumar o dinheiro, ainda querem respostas de uma maneira mais concreta, como se você não pudesse dialogar com os dois universos, o do filme autoral e o da grande produção. Quando convidei o Cauã para fazer o filme, isso há algum tempo, pois demoramos para conseguir o dinheiro, certas pessoas perguntavam se pelo fato de ter o Cauã Reymond ele seria maior. É uma troca, acredito que precisamos ter essa cara de pau. Temos de ignorar um pouco essas fronteiras.
Olha, voltamos a falar sobre as fronteiras, algo caro ao filme…
Verdade (risos). Existe um território imenso a ser explorado de filmes que lidam com os dois imaginários. Tive essa discussão aberta e publicamente com o atual ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, na época presidente da Rio Filme. Ele fazia questão de separar bem comercial e autoral. Na ocasião, perguntei a ele em que porta bater, já que meu filme é autoral e tem o Cauã Reymond. Meu próximo longa, que acabei de filmar, é uma coprodução Brasil/Portugal, basicamente com atores jovens de teatro e pontuais participações de atores mais conhecidos, mas essencialmente de jovens. Então, cada filme é um filme.
(Entrevista concedida, ao vivo, durante o 50º Festival de Brasília, em setembro de 2017)
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