Em 22 de julho, chega aos cinemas uma obra ousada, premiada no Festival de Brasília. Música para Quando as Luzes se Apagam (2017), dirigido por Ismael Caneppele, propõe uma mistura entre ficção e documentário. De um lado se encontra Emelyn Fisher, jovem explorando sua sexualidade e identidade de gênero numa pequena cidade gaúcha, onde passa a se reconhecer como Bernardo. Do outro lado, Julia Lemmertz interpreta uma artista que viaja ao sul do país e se aproxima de Emelyn.
O diretor propôs uma vivência de longos meses com a equipe reduzida, acompanhando as interações espontâneas e permitindo que os atores se tornassem amigos de fato. Ao final, tinha 600 horas de filmagem, condensadas num longa-metragem de 70 minutos. Nós conversamos com a atriz principal sobre esta experiência incomum:

 

Emelyn Fisher em Música para Quando as Luzes se Apagam

 

Como nasceu o teu envolvimento com o filme?
O Ismael me encontrou no Facebook. Ele estava procurando pessoas da região, porque a história do livro se passa aqui no Vale do Taquari e nos arredores. Ele achava justo retornar ao lugar contado no livro. Acredito que ele colocou um anúncio no jornal também, mas não cheguei a ver. Uma prima dele, que mora em Cruzeiros, sugeriu alguns perfis, incluindo o meu. O Ismael me chamou no Facebook, o que foi uma surpresa, porque eu nunca tinha pensado em fazer cinema. A gente se encontrou para uma conversa, quando ele me explicou o projeto e disse que me avisaria caso fosse selecionada. Uns meses depois, eu já tinha até me esquecido disso, mas o Ismael me disse que ainda estava de pé, e o filme ia acontecer. Começamos a gravar em 2015, até junho de 2016.

Qual foi o processo de preparação para aparecer em frente às câmeras pela primeira vez?
A Karina foi a nossa sutilizadora. Antes de entrar em cada cena, sobretudo aquelas em que eu mostraria mais o corpo, a gente fazia um trabalho de preparação antes. Não dava para apenas pegar a câmera e ir gravar. O Ismael chamava isso de sutilização do corpo antes de entrar em cena. Eu fui me preparando durante o próprio processo do filme, enquanto gravava.

Como foi a relação com Julia Lemmertz, que interpreta uma figura materna?
O nosso primeiro encontro já foi em frente à câmera. Mesmo assim, tivemos um encontro sozinhas à beira do rio, numa cena que acabou entrando no corte final. É a cena em que a personagem dela fala de um livro – a Julia inclusive me deu o livro. A gente faz um piquenique ali. Foi a primeira vez que encontrei a Julia, e a gente se conectou na hora. Depois disso, passamos a semana toda juntas. Foi uma vivência, fomos nos conhecendo diante das câmeras. A gente não fazia nada sem câmera: só almoçar, que eu me lembre. Do resto, a câmera estava sempre ligada.

Música para Quando as Luzes se Apagam

Em se tratando de um documentário, o quanto o diretor controlava as cenas, ou sugeria ações para as câmeras?
Ele direcionava o que queria, nunca deixava as ações totalmente avulsas. Ele nos pedia para caminhar devagar, ou mais rápido, para a câmera se adequar ao nosso ritmo – não adiantava andar rápido demais, por exemplo, e a câmera não conseguir acompanhar. Para as vivências, ele apenas dizia algo como “Agora vocês vão para o rio”, mas não dizia o que a gente deveria fazer lá. Ele direcionava um pouco o tema da conversa, mas depois, deixava a interação acontecer livremente. Faz seis anos que filmamos, mas me lembro de não ter feito várias tomadas para cada cena, exceto na sequência do chuveiro, que exigiu vários takes. A cena da moto também exigiu algumas repetições. O resto foi na base da espontaneidade.

Como reagiu ao ver sua imagem no corte final? Isso despertou a vontade de continuar fazendo cinema?
O filme foi só uma experiência pontual. O Ismael só deixou a gente ver o resultado no Festival de Brasília, e assisti pela primeira vez lá, na tela grande, cercada por um monte de gente. Não tinha a menor ideia do que ficaria no corte final, porque a gente gravou 600 horas. Era coisa demais. Não imaginava que ele fosse selecionar aqueles trechos em especial. Depois vi mais uma vez, com a minha família. Foi uma sessão em 2017, e outra antes da pandemia. Só isso.

Como percebe o retrato de gênero e sexualidade no filme?
No filme existe um Bernardo, uma ideia de transição. Eu nunca pensei em mudar meu nome, nem fazer qualquer transição assim. Essa parte, de Emelyn para Bernardo, não existe na minha vida – aquilo foi realmente uma ficção. No filme, existe uma cena em que grito o meu nome, e depois se fala sempre no Bernardo. Foi muito estranho gritar o meu nome, aliás! De qualquer modo, a questão trans foi uma ficção. Esta foi a parte em que eu mostrava mais o meu corpo. Existiu um preparo para isso também, às vezes de mais de uma hora. Por exemplo, para a cena do beijo com o Lucas, e convivi durante bastante tempo com ele, durante um ano e meio. Somos amigos de verdade. Não foi como uma novela, onde os atores se encontram, gravam e tchau. A gente teve um processo de um ano e meio para se conhecer, para ficar juntos todo fim de semana. A afinidade foi acontecendo. Cada gravação avançava no processo de intimidade. No final, ficamos amigos de verdade.

Música para Quando as Luzes se Apagam

Enxerga esta história como universal? Todos podem se identificar com ela?
Acredito que sim. Todas as pessoas ainda podem descobrir alguma parte do seu corpo, da sua identidade. Eu mesma descobri muitas coisas sobre mim nesse processo, por exemplo, quando fiquei nua na frente das câmeras, cercada por pessoas que eu não conhecia até então. A gente se tocava, tocava nos ambientes. Isso gerou sentimentos e descobertas. Todo mundo ainda tem uma parte de si para descobrir. Estamos aqui para nos descobrir, e para descobrir o outro.

O impacto do filme se torna ainda maior pelo lançamento durante este período conservador de um Brasil crise?
O filme tinha previsão de ser lançado antes, mas isso não aconteceu por causa da pandemia. Ele chega no momento em que se levanta essa bandeira. Algumas pessoas não achavam necessário falar sobre gênero e sexualidade, principalmente os conservadores, mas hoje tem heterossexuais levantando a bandeira também. Eles também podem identificar uma nova forma de ser no outro, algo que é normal e não precisa mudar. O respeito pelo outro é essencial, e é o que falta nesse Brasil.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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