No 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, o Brasil venceu seu maior prêmio com Meu Nome É Bagdá (2020), dirigido por Caru Alves de Souza, eleito o melhor filme pelo júri na Mostra Geração. O drama teve seus direitos internacionais adquiridos antes mesmo da exibição no festival pela Reel Suspects, distribuidora especializada em cinema independente, que também distribuiu os premiados Malila (2017) e Teerã: Cidade do Amor (2018), por exemplo.

A trama gira em torno de Bagdá (Grace Orsato), jovem que vive pela periferia de São Paulo, praticando o skate dentro de um grupo de meninos. Ela sofre preconceito e intimidações da polícia e dos garotos, mas encontra um lugar seguro com a mãe (Karina Buhr) e as irmãs, além das colegas de trabalho da mãe. A rotina de Bagdá se transforma quando ela descobre um grupo de skatistas mulheres. O Papo de Cinema conversou com Caru Alves de Souza em Berlim sobre o filme:

 

Karina Buhr, Caru Alves de Souza e Grace Orsato. Foto: Berlinale / Divulgação

 

As cenas com a família e amigos de Bagdá trazem uma espontaneidade impressionante. Como conseguiu criar esta dinâmica?
É muito engraçado: para chegar na espontaneidade, você precisa de um trabalho de construção muito grande, senão a espontaneidade não funciona. Isso vem desde o roteiro, quando definimos a função de cada cena na história. Depois, tem a preparação de atores com a Marina Medeiro, que é uma profissional incrível. Ela trabalha muito criando laços entre as personagens. Mais do que ensaiar as cenas propriamente ditas, dedicamos mais tempo em criar esses laços e fazer com que a família e o grupo de amigos se tornassem reais. Além disso, sempre estamos abertos à contribuição dos atores tanto para a mise en scène, com à movimentação dentro da cena, quanto para os diálogos. A Paula Preta, nossa produtora de elenco, reuniu atores, cantores e atores não profissionais num grupo distinto e interessante, que tinha muito a ver com o espírito do filme e os personagens que a gente estava criando. Essa espontaneidade só foi possível graças a essa construção.

Ao mesmo tempo, muitos diálogos e interações foram improvisados. Nós nunca dizíamos exatamente como os atores precisavam se movimentar. A Camila Cornelsen teria que estar pronta para o que der e vier. Ela é uma diretora de fotografia extremamente talentosa, e deu conta disso. Tem uma premissa anterior, no caso: estamos fazendo um filme sobre pessoas que não se curvam aos padrões da sociedade. Tanto o elenco quanto a equipe estão repletos de mulheres, de pessoas negras, de mulheres trans, de homens gays. Nós sabemos bem como a sociedade sempre diz o que temos que fazer, como precisamos nos comportar e o que precisamos vestir. Eu não queria reproduzir isso no filme, então não fazia sentido dizer o que eles tinham que fazer. Eram eles que apontavam possibilidades dentro daquela construção.

Você pensou em testar o comportamento da Bagdá dentro de um relacionamento amoroso, ou então na escola, no trabalho?
No que diz respeito a relações amorosas, nós preferimos deixar a personagem muito ambígua, ou melhor dizendo, muito livre. Ela pode tanto querer ficar com meninos quanto querer ficar com meninas. Essa personagem, em especial, ainda está entendendo quem ela é, então todas as possibilidades são possíveis. Eu não queria colocá-la num lugar de trabalho, porque a minha ideia era ter essa menina skatista sempre na rua, ou em ambientes familiares de maior liberdade. Quando você escolhe uma personagem skatista, ela precisa ocupar a rua, precisa estar neste espaço, o que é a coisa mais linda do mundo.

 

 

O filme mistura cenas realistas com performances musicais e teatrais. Como essas duas esferas se conectam?
Elas se conectam, no final das contas, porque tudo decorre da experiência da personagem. Enquanto o naturalismo das cenas se comunica com o dia a dia da Bagdá, o lado mais lúdico reflete o aspecto interior, mais fantasioso da garota. Gosto da ideia de trabalhar vários registros. Estamos no momento em que todo mundo sabe que cinema é uma construção, aquilo não existe de fato. Se você adota uma linguagem naturalista durante 90% do filme, não tem problema incluir alguma cena antinaturalista, porque todo mundo percebe que aquilo é uma construção. Além disso, em nenhum momento nós tentamos dizer que aquilo não é uma ficção – o filme assume seu caráter claramente fictício. Preferimos, na maior parte das cenas, o registro naturalista por uma questão anterior: eu não queria ter um set muito pesado, com muita luz, nem queria disciplinar os atores. Isso naturalmente me levou à linguagem mais realista, com luz natural e uma decupagem não tão definida.

O fato de Bagdá se filmar, no início, dá a entender que teremos muitas imagens de telefone celular refletindo sobre a juventude conectada. Mas é surpreendente descobrir que o principal registro vem de uma câmera antiga.
Os skatistas e as skatistas se filmam o tempo inteiro, com tudo o que têm à mão: celulares bons e ruins, câmeras não profissionais, câmeras profissionais… Eles se filmam com qualquer suporte. Quando conhecemos a Grace, ela tinha exatamente essa câmera que usamos no filme. Aquela câmera pertence à Grace de fato. Resolvemos incorporar então, assim como incorporamos diversas características dos atores aos personagens.

A sua equipe é formada quase inteiramente por mulheres. Como vê a importância de trazer histórias de um ponto de vista 100% feminino?
Temos profissionais mulheres incríveis, e muito bem preparadas, em todas as funções possíveis. A desculpa de que ainda não existem boas mulheres formadas em uma ou outra área é besteira: elas são tantas que a única dificuldade é escolher com qual trabalhar. O problema é outro: a sociedade ainda demonstra menos confiança no trabalho feminino. Essa seleção decorre de um mecanismo “natural”, em certo sentido, porque você tem apenas um tipo de pessoa controlando as narrativas. Quando você vê os dados, a grande maioria dos filmes é feita por homens brancos de classe média-alta. Eles só confiam então em homens brancos de classe média-alta. É o famoso clube do Bolinha. Por isso ficamos falando tanto em diversidade, e as pessoas acreditam que seja uma besteira. A mesma diversidade da sociedade precisa estar presente em todas as esferas da criação artística.

Eu fui a uma palestra aqui na Berlinale, organizada por uma ONG, e disseram: “Não é mais possível escreverem histórias sobre a gente sem que a gente participe”. Não precisamos mais de um homem branco contando as nossas histórias, nós podemos fazer isso por nós mesmas. Temos pessoas qualificadas em todas as áreas, incluindo ótimos diretores e diretoras indígenas, mulheres e homens negros fazendo filmes excepcionais, de qualidade inquestionável. Todos estão capacitados a contar suas próprias histórias. Nos poucos casos em que ainda existem poucas mulheres exercendo, isso ocorre porque os homens fecharam o acesso a esses setores, mas não por incapacidade das mulheres. A divisão entre função feminina e masculina é criada artificialmente. Só não enxerga quem não quer ver.

 

 

O diretor artístico da Berlinale, Carlo Chatrian, afirmou ter percebido os diretores brasileiros apressados em finalizar seus filmes, por medo de verem os recursos para o cinema se esgotarem com o novo governo. Esse foi o caso de Meu Nome É Bagdá?
Completamente. Fizemos o filme com muito menos dinheiro do que imaginávamos a princípio, o que exigiu diversas adaptações. Filmamos logo após a eleição do atual presidente, e um cada membro da equipe olhou para o outro e pensou: “Ou fazemos agora, ou talvez a gente não faça mais”. Percebemos que em 2019 houve uma paralisação total dos projetos, que não sabemos quando serão retomados. Os filmes realizados agora, incluindo Meu Nome É Bagdá, estão sendo feitos com recursos dos governos anteriores. O futuro é muito incerto. A cultura é uma área da sociedade que vinha em crescimento expressivo: se temos dezenove filmes selecionados neste festival, certamente não é graças ao atual governo, e sim às políticas públicas dos governos anteriores.

Falamos muito de resistência, e sei que de alguma maneira nós vamos resistir. Mas fico preocupada quando adotamos o discurso romântico de que vamos fazer filmes sem dinheiro, com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. Eu não acredito nisso. Gosto de fazer cinema em que eu possa pagar os profissionais para que vivam dignamente. Não quero fazer cinema em que as pessoas precisem trabalhar de graça. Não quero pedir favor ao trabalho de profissionais porque estou sem dinheiro, já que o governo interrompeu as políticas públicas. Eu me recuso a adotar esse tipo de discurso. Quando você considera a arte como um hobby, ou quando pensa que podemos fazer arte sem dinheiro, você exclui 99% da população, porque apenas 1% não precisa trabalhar e pode fazer arte de graça. Todos os outros vivem disso, e quero que esses 99% façam cinema. É isso que estava começando a acontecer agora.

Temos que tomar cuidado com o discurso romântico de que vamos fazer filmes de qualquer jeito. Não quero fazer filmes de qualquer jeito. Quero valorizar a profissão de gente competente, que executa um bom trabalho e vive disso. Todas as pessoas que fazem cinema são trabalhadores que precisam de dinheiro para sobreviver. O cinema é caro, exige processos tecnológicos. O mesmo vale para o teatro: para manter um grupo de teatro vivendo dignamente, é preciso dar dinheiro àquelas pessoas. Senão, voltamos à época em que só fazia cinema quem tinha dinheiro para se sustentar, ou que recebia dinheiro da família. Aí a diversidade acaba de vez.

 

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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