Carlos Jardim é jornalista e escreveu um livro para eternizar a sua paixão pela cantora Maria Bethânia: Ninguém sabe quem sou eu (a Bethânia agora sabe!). O chefe de redação do canal Globonews também fez um filme tendo como ponto de partida essa reverência. Maria: Ninguém Sabe quem sou Eu (2022) traz Bethânia num longo e inédito depoimento sobre a própria vida, no qual fala de religiosidade, músicas que lhe tocam o coração profundamente, momentos difíceis, alegrias, saudade dos pais e da fortaleza da figura de seu irmão Caetano Veloso. E para saber um pouco mais como foi esse processo de construção do filme, conversamos remotamente com Carlos Jardim. O que diferencia o olhar de um fã? Como não ser completamente enredado pelo ídolo e ainda assim construir uma coerência cinematográfica que garanta a qualidade de uma obra artística? Essas e outras discussões você confere logo abaixo neste Papo de Cinema exclusivo que tivemos com Carlos Jardim a respeito de Maria: Ninguém Sabe quem sou Eu, em meio ao qual ele estava exultante com o sucesso das vendas de ingressos nas pré-estreias no Rio de Janeiro, em São Paulo e Salvador: “ainda mais no momento difícil que vive o cinema brasileiro”.
Você é um diretor admirador, um fã confesso de sua protagonista. Contrariando as correntes documentais que pregam distanciamento, você propõe uma enorme proximidade. Era um propósito estilístico do filme ou você não teria como fazer o filme de outra maneira?
Não sou cineasta. Sou jornalista com 37 anos de experiência na televisão. Tenho uma ligação grande com o audiovisual, mas nunca tinha realmente feito cinema. Quando pensei em fazer um filme sobre ela, não imaginei virar cineasta (risos). Queria fazer um filme sobre a pessoa e a artista que admiro. Há filme lindíssimos sobre Bethânia, mas sentia falta de ver um filme inteiro apenas com ela falando. Fiz o filme imaginando como outros fãs gostariam. Na pré-estreia que fizemos em São Paulo, os fãs vieram conversar emocionados comigo, então fiquei feliz por ter alcançado meu objetivo. Além disso, tinha o desejo de alcançar os que não são fãs desesperados. Que esses fãs normais (risos) tenham a noção de o porquê essa artista está no cenário cultural brasileiro há 57 anos. Que eles entendam o processo criativo da Bethânia, o porquê a personalidade dela ser tão fundamental para seu trabalho de palco e disco.
Mas, você não se coloca no filme como personagem. Por quê?
Em nenhum momento pensei nisso. Queria apenas a Bethânia. Claro, tivemos o luxo de contar com a Fernanda Montenegro falando aqueles textos. Selecionei textos de pessoas expressivas falando sobre ela e, para a minha imensa alegria, a Fernanda topou gravar, fazendo essa narração deslumbrante. Aliás, cobri isso com fotos de fãs que pesquisei na internet. Isso era apara atender ao princípio do filme de fã para fã. Minha ideia sempre foi colocar a Bethânia sem interferência. Enquanto ela fala não há música, sonorização ou cobertura. Não interfiro na imagem dela. Queria ver o brilho no seu olhar, o gesto e tudo mais. A câmera está fixa para que possamos vê-la por inteiro.
E como ser objetivo diante de alguém que se admira tanto? Aliás, você durante o processo buscou essa objetividade ou se deixou levar mais do que pensava inicialmente?
Muita gente diz assim para mim: “você gosta de tudo o que a Bethânia faz porque você gosta da Bethânia”. E é justamente o contrário, ou seja, gosto dela porque gosto de tudo o que ela faz. É bem diferente (risos). Mas, sei manter um distanciamento, algo comum a nós jornalistas. É algo perfeitamente natural da nossa profissão. Meu olhar é de fã, um olhar carinhoso e respeitoso acima de tudo. Para poder fazer com que ela falasse, era preciso ter certo distanciamento ao elaborar as perguntas e construir o roteiro.
Você opta por um formato bem tradicional, com entrevistas sendo entremeadas por imagens de arquivo. O que levou você a escolher essa forma de contar a vida de Maria Bethânia?
A linguagem do filme estava claríssima para mim desde o começo. Falei para a equipe que gostaria de as câmeras não perdendo nada, atuando em vários ângulos e que em certos momentos eles pegassem meu áudio por baixo, especialmente quando precisasse fazer alguma intervenção. Desde o começo foi pensado realmente assim, com a Bethânia falando e as câmeras nela. Na hora da montagem selecionei a dinâmica que me parecia mais interessante. Por exemplo, nas horas em que ela fala coisas mais reveladoras, utilizo o close; quando ela reverencia o palco, utilizo o plano aberto para vermos que está num palco. Desde a escrita do roteiro o filme foi pensado dessa maneira.
Mesmo um fã inveterado como você deve ter descoberto coisas sobre Maria Bethânia durante esse processo. Você realmente descobriu algo que ainda não sabia sobre ela?
A nossa pesquisadora, a Ana Tapajós, encontrou um documento do SNI (Serviço Nacional e Informação), um órgão repressor da ditadura. Nele, a Bethânia era tratada como artista marginada. Coloquei isso no filme. Também não sabia que ela tinha sido levada para o quartel e ficado um ano se apresentando ao DOPS (Departamento de Ordem Pública e Social) uma vez por semana. E descobri que ela tinha sido percursionista num grupo musical quando jovem, veja só. Não podia imaginar ela como percursionista, pois a gente acha que ela nasceu cantando (risos).
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