Cordula Kablitz-Post é uma das novas vozes do cinema alemão. Apesar de ter uma carreira de mais de duas décadas, seu trabalho até então era restrito à televisão e ao vídeo. Foi em 2016, no entanto, que lançou seu primeiro longa de ficção, a cinebiografia Lou, premiada como Melhor Filme no Festival Internacional de Cinema de Emden, que chegou primeiro aos cinemas alemães, para depois ser exibido também na Áustria e na Suíça. O Brasil é o primeiro país fora da Europa onde o filme entrará em circuito comercial, trazendo ao conhecimento do público brasileiro a vida e a obra de Lou Andreas-Salomé, a filósofa e psicanalista que, enquanto viva, se relacionou com homens como Rilke, Nietzsche e Freud, alterando para sempre a visão deles sobre o mundo. E foi sobre esse longa que o Papo de Cinema teve uma conversa exclusiva com a realizadora. O bate-papo foi feito via Skype, em uma conexão direta entre o verão brasileiro e o frio inverno de Berlim, que resultou em uma conversa reveladora. Confira!

 

Olá, Cordula. Tudo bem? Lou é o seu primeiro longa de ficção para o cinema. O que lhe estimulou a esse desafio?
Havia feito muitos documentários e produções para a televisão. Mas posso dizer, ter feito Lou foi a realização de um sonho. Quando estava estudando, tive vários trabalhos como assistente de direção em curtas e longas de ficção, e aprendi muito em cada uma dessas experiências. Por isso ansiava em voltar a este estilo de cinema. Nos anos 1990, a televisão era o lugar onde a gente podia começar, pois não havia muito dinheiro, era um campo aberto às experimentações – bem diferente de hoje em dia. Acontece, também, que nunca fui muito paciente – queria começar a fazer os meus filmes o mais rápido possível. Então, naquela época, o jeito de se começar era na televisão. Só que o tempo passou, e quando já estava há vinte anos nesse mesmo trabalho, parei e me perguntei: “o que eu realmente queria fazer quando era estudante?”. Foi quando decidi voltar ao meu desejo original, que era criar histórias ficcionais.

Nossa conversa por skype com a diretora alemã

Qual foi o seu primeiro contato com a história de Lou Andreas-Salomé?
Então, quando decidi que estava na hora de voltar ao exercício da ficção, me vi com outra dúvida: que história deveria contar? Nesse momento, lembrei de um livro que havia lido muitos anos atrás, quando adolescente. Era uma biografia de Lou Andreas-Salomé. E aquilo havia me impressionado muito, pois quando você é jovem, principalmente uma menina, e está procurando por ídolos a seguir, é raro encontrar grandes mulheres em quem se espelhar. Por isso a trajetória da Lou me inspirou tanto.

 

Este livro que você leu, é o mesmo que aparece sendo escrito no filme?
Não, era outro livro, ao qual faço apenas uma referência no filme. Obviamente, há ainda a autobiografia que ela mesma escreveu, mas essa é muito racional, focada nos seus estudos e menos em tudo que viveu. Ela nunca quis colocar a si mesmo no centro das atenções. Era muito direcionada aos fatos, então tive que empreender uma jornada pessoal pelas emoções dessa vida. E tudo começou com esse livro, My Sister, My Spouse: A Biography of Lou Andreas-Salome, de H. F. Peters, um ator norte-americano, que li quando tinha apenas 17 anos.

 

A história dela ficou com você durante todo esse tempo?
Acontece que estudei Literatura Alemã na faculdade, também, e qualquer estudo sobre a literatura na Alemanha no século XX, de um jeito ou de outro, acabará cruzando com a trajetória da Lou. Além dela ter sido muito importante, os contatos que estabeleceu em vida foram igualmente marcantes. Com o Rilke ela manteve um romance de cinco anos, além de terem permanecido amigos por toda a vida. Ele escreveu muitos poemas sobre ela. Não há como escapar dela quando você está inserido nesse meio, tamanha foi sua relevância. E teve também Nietzsche, Freud, e outros. Não cheguei a esquecer dela, porque de um jeito ou de outro ela sempre me acompanhou durante todo esse tempo.

Durante a premiação no Festival de Emden

Você é uma realizadora, e antes da Lou, realizou um telefilme sobre a cantora Nina Hagen. Histórias femininas lhe atraem mais? Por quê?
Sim, claro. Puxa, como você sabe disso? Sei que a Nina Hagen é famosa no Brasil, mas esse filme foi algo muito pequeno (risos). Mas fico feliz com a pergunta. Acho que há tantas grandes histórias sobre mulheres que ainda não foram contadas, e alguém precisa se ocupar disso. Eu, enquanto mulher, gosto de ficar a par dessas trajetórias. Descobrir o que elas fizeram para viver nesse mundo. Talvez seja essa a razão de eu ser mais, genuinamente, interessada em histórias de mulheres. E há tantos diretores homens, e tantos filmes sobre homens, que talvez seja um compromisso para as realizadoras assumirem, mesmo.

 

Há cenas de passagens, no filme, com retratos que ganham vida. É um recurso bonito que desperta a atenção do espectador. Por quê você decidiu usar esse tipo de artifício?
Muito obrigado. Você sabe, chegar a cada uma destas imagens foi um processo longo. Pra ser sincera, não tínhamos o orçamento de uma produção de Hollywood. Nosso filme custou 2,3 milhões de euros, e um projeto dessa estatura geralmente custa em torno de 5 a 6 milhões de euros. Então tivemos que usar alguns truques, pensar em soluções que nos possibilitassem contar a nossa história. Como venho do documentário, me perguntei se não seria interessante termos cartões-postais como ilustração. A própria Lou tinha estes cartões em sua escrivaninha, é possível percebê-los no filme. Era algo que poderíamos usar. Me inspirou também algo que vi em Frida (2002), o longa de Julie Taymor estrelado por Salma Hayek. É um filme que gosto muito, e há nele uma passagem situada em Nova York que usa um tipo de animação. Foi quando tive esse estalo: “aí está um outro jeito de contar os fatos”. Sem parecer pobre, mas de uma forma criativa, que se encaixaria dentro da nossa proposta. E seria ainda mais especial, pois nunca foi usado.

 

É um modo simples, mas belo. E ainda tem a vantagem de oferecer ao espectador um olhar sobre uma Berlim de um século atrás, por exemplo.
Exatamente, você tem toda a razão. Quando alguém filma em Roma, por exemplo, você nunca verá exatamente como era o Rio Tigre, pois hoje ele é diferente daquele antigo, até mesmo seu curso foi alterado. E os cartões-postais são retratos fieis de uma época, à qual é impossível retornar. E fizemos o mesmo não apenas na Alemanha, mas também nas passagens por São Petersburgo, por exemplo. É algo que realmente gosto no filme, e sinto orgulho de termos feito desse jeito.

Pré-estreia de Lou na Alemanha

Em Lou, se discute muito as relações da protagonista com figuras célebres como Nietzsche, Rilke ou Freud. Você não acha que faltou espaço para discutir a obra pessoal dela?
Veja bem, durante toda a sua vida, ela escreveu muitas coisas diferentes. Era filósofa, psicanalista, novelista, etc. O corpo do trabalho dela é imenso. Não haveria como abordar tudo em um único filme. Quando você faz um filme sobre Einstein, por exemplo, pode escolher “ok, vou falar sobre a Teoria da Relatividade”. Mas Lou era muito diversa, com tantas coisas diferentes, que não dá pra escolher apenas um tema. Quando decide contar toda uma vida, é preciso escolher um filtro. Então, para mim, o mais importante sobre ela era esse ideal de liberdade. É o que há de mais essencial sobre ela. Tudo que escreveu, de um jeito ou de outro, era sobre liberdade. A ausência de Deus, a presença feminina, a relação com os homens, tudo tinha a ver com a ideia de ser livre. Ela foi um espírito muito livre. E como contar isso era muito difícil. É preciso mais mostrar do que apenas dizer. E também decidir o que contar ou não. Há também quem reclame que não é muito abordado o lado psicanalítico do trabalho dela. Mas como poderíamos ter feito isso? Só com um filme de dez horas de duração seria possível! Ela nunca foi uma pessoa atenta às regras. Ela fazia o que queria. Essa vontade de ser livre sempre foi o que mais me interessou. E era essa liberdade que queria contar.

 

Você sabe, no Brasil é comum filmes que passam nos cinemas depois serem exibidos na televisão como minisséries, com maior duração e cenas extras. Você não chegou a pensar em fazer o mesmo com Lou?
Que ótima ideia! Com certeza poderia fazer uma minissérie sobre o Lou. Mas na Alemanha acho que seria difícil – como disse antes, a televisão por aqui é bem diferente daquela de duas ou três décadas atrás. Mas adoraria fazer isso no Brasil. Será que não consigo um convite para ir trabalhar aí (risos)? Mas, brincadeiras à parte, com certeza isso seria algo que me interessaria. Quem sabe na Netflix, por exemplo? Seria interessante, com certeza.

Cordula no set de filmagens de Lou

Lou Andreas-Salome é interpretada por quatro atrizes diferente. Como foi feita essa seleção? O que era importante que tivessem em comum?
Eu tinha uma certa visão de como a Lou deveria ser. Nada vaidosa, focada apenas em si mesma. Procurei por atrizes que tivessem essa mesma ‘aura’, por assim dizer. A primeira que encontrei foi Katharina Lorenz, que interpreta a Lou dos 22 aos 50 anos – ou seja, é a que passa mais tempo em cena. Ela é uma popstar por aqui, não sei se você sabe. É uma atriz de teatro e muito famosa também por seus trabalhos na televisão, mas que, curiosamente, fez pouco cinema. É muito procurada também na Áustria, pois trabalha em uma companhia de teatro em Viena. É uma grande estrela. E esse era um desejo meu, trabalhar com atores de teatro, pois gosto o modo como eles se aprofundam no personagem. Não são meras celebridades, mas estrelas de verdade, reconhecidas por seus talentos. E enquanto espectadora, acredito ser mais fácil acreditar nela enquanto Lou, uma vez que você não a conhece de nenhum outro lugar. É quase como um sonho: “poderia ser essa a Lou de verdade?”. E, de fato, ela se parece com a Lou, quando você compara as duas através de fotos antigas.

 

Nicole Heesters, que interpreta a Lou nos seus setenta anos, também tem um desempenho impressionante.
Ela foi mais difícil de encontrar. Nicole realmente é uma grande atriz, mas fazia muitos anos que não fazia um filme, só trabalhos na televisão. Quando disse que a queria no filme, muita gente ficou em dúvida, vinham me aconselhar com várias restrições, do tipo “será que ela consegue?”. E eu era muito enfática: “é claro que sim!”. A personalidade dela é muito forte, e é uma mulher tão bonita – sabe, nos acostumamos a pensar que mulheres de uma certa idade não possuem mais desejos sexuais, o que é uma grande mentira. Ela tem uma presença, um erotismo, que vinha bem de encontro ao que estava procurando.

 

De fato, é possível sentir uma tensão erótica entre ela e o rapaz que à sua porta.
Que bom que você percebeu isso. Então vou lhe contar mais uma coisa: isso não estava no texto original, foi algo que descobri a partir de outras pesquisas, descobertas que tive em outras fontes. Fui até o lugar onde ela morou durante muitos anos, aqui na Alemanha, e entrevistei vários dos seus vizinhos e pessoas que a conheceram. E o que me disseram, inclusive a doutora que hoje é responsável pelos arquivos pessoais dela, filha desse biógrafo que aparece no filme, que o pai dela era muito apaixonado por Lou. Quando ouvi isso, pensei de imediato: “aí está a história que quero contar”. Não foi algo que inventei, e obviamente se poderia perceber o quanto esse homem a amava. Ele era muito tímido, cheio de problemas psicológicos, vai em busca de ajuda e a encontra. Como não se apaixonaria? Ele fica fascinado por ela, e essa fascinação existe até hoje a respeito de Lou.

Entre Nicole Heesters (à esquerda) e Katharina Lorenz, que interpretam a protagonista de Lou, pré-estreia do filme

Você conhece o Brasil? E o cinema brasileiro?
Estive no Rio de Janeiro, sim, há uns dois anos. Foi uma experiência incrível, adorei o país. Só que estive a trabalho, filmando um documentário para uma emissora de televisão alemã, a Arte. Era um programa sobre manifestações culturais ao redor do mundo, e passamos por momentos maravilhosos aí no Rio, registrando um pouco da arte brasileira. Mas deveria viajar mais, preciso conhecer o Brasil melhor. É um país tão apaixonante. Infelizmente, conheço pouco também o cinema brasileiro. Sei que sempre há filmes do Brasil no Festival de Berlim. Um que me marcou muito foi Central do Brasil (1998). Uma história muito poderosa, uma grande atriz.

 

Como espera que seja a recepção de Lou no Brasil?
Olha, nem sei o que esperar. Fiz um post na minha página pessoal no Facebook, avisando que o filme iria estrear no Brasil, inclusive com o pôster brasileiro, e o feedback que recebi foi incrível. Algumas pessoas, inclusive brasileiras, havia me perguntado antes quando o filme iria estrear e tal, e nunca sabemos o que dizer. Ficamos nas mãos dos distribuidores, você sabe. Mas você conhece o Brasil melhor do que eu, talvez possa me dizer melhor o que esperar. Mas o que posso dizer é que estou na torcida para que o maior número possível de pessoas o vejam, e gostem do filme. E seguir com a esperança de que Lou seja reconhecida também no Brasil. Se isso acontecer, já estará ótimo. Essa foi a minha motivação original com este filme: fazer com que a Lou não seja esquecida, mas também descoberta. O filme deve ser visto como uma porta de entrada a tudo que ela fez. Se depois de terem assistido forem ler seus livros e se depararem com suas ideias, aí, sim, será fantástico.

(Entrevista feita ao vivo via Skype na conexão Brasil/Alemanha em janeiro de 2018)

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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