Já se passaram sete anos desde a mobilização estudantil brasileira de 2016, mas o tempo provou que a efervescência política da época ainda se agravaria muito. Na época, uma série de manifestações e ocupações foram realizadas por alunos da rede pública visando barrar projetos e medidas retrógradas dos governos estaduais vigentes. Entre desorganizações de relatos, o cineasta Zeca Brito decidiu registrar os fatos e, ao mesmo tempo, desenvolver reflexões a respeito dos acontecimentos com o docudrama Hamlet, exibido na Mostra Brasil da 43ª Mostra de São Paulo e, mais recentemente, na Mostra Competitiva de Longas-Metragens Gaúchos do 51° Festival de Cinema de Gramado. Em sua passagem pela Serra Gaúcha, conversamos com o realizador sobre a produção. Confira!
Estamos falando de um híbrido. Ele tem dramatização e documentário. Pode explicar essa fusão entre o Frederico Restore e o clássico de Shakespeare?
O núcleo vem da questão “ser ou não ser, eis a questão” e tentar chegar nessa essência. Quando pensamos em Hamlet, o que vem à cabeça? Qual é o maior clichê desse ensinamento? Acabamos resultando na antropofagia do “tupi or not tupi”. Ou seja, na nossa raiz cultural. Então, o que é ser um cidadão? Esse é o debate do filme. Quando a história passa, o que fazemos? Cruzamos os braços e deixamos ela nos atropelar? Ou combatemos aquilo que nos oprime para tentar construir uma sociedade melhor? A partir desse paralelo, num país em ruínas e tomado por parasitas, como em Hamlet, tentamos nos inspirar para desenvolver esse “caminhar humano”, pois o mundo está acontecendo lá fora e precisamos participar de alguma forma.
Como surgiu a ideia de acompanhar os alunos nas ocupações e a parceria com o ator?
A construção se deu no impulso e no processo. Em 2016, o Brasil viveu dias tórridos na política, principalmente concentrados no mês de abril, que resultaram em uma série de registros que se fizeram presente na filmografia brasileira recente. Democracia em Vertigem (2019), Espero Tua (Re)Volta (2019) e Alvorada (2021) são alguns exemplos. A história estava acontecendo e precisávamos registrá-la. O foco é a ocupação dos estudantes secundaristas no Instituto de Educação General Flores da Cunha, em Porto Alegre. Essa colaboração com o Frederico, que trabalhou comigo em Legalidade (2019) e que tinha 17 anos na época, surgiu de uma ideia de apoio, pois ele estava ocupando a escola onde estudava. Como parte central, era valioso evidenciar a deterioração dos espaços públicos, principalmente diante de um relato hegemônico da mídia tradicional, que tentava desmerecer a luta dos acadêmicos, criando factoides sensacionalistas. Enxerguei uma oportunidade de auxiliar na compreensão dos fatos e eliminar clássicos desajustes entre história e narrativa.
Ainda sobre falência do Estado e questões semelhantes, fale mais sobre esses conflitos de discursos?
Não havia espaço de acolhida por parte da classe dominante. Era difícil para eles aceitarem que o sistema educacional é militarizado, fechado, hierárquico e distante da realidade das pessoas. Por consequência, ultrapassado. Portanto, os jovens estavam corretos em se manifestar, já que são eles os primeiros consumidores desse modelo. Entretanto, é fácil criar a ideia de “baderna” e “vadiagem” para o espectador comum. Aqui também entra um dos méritos do longa, que capturou esse momento de politização do alunos.
E você percebeu, durante as filmagens, esse esclarecimento dos alunos na atuação cidadã?
Pode-se dizer que as aulas não pararam, pois criaram uma espécie de assembleia para discussão de pautas importantes. Além disso, abriram espaço para importantes nomes da política e da cultura dividirem suas experiências em reuniões. É o caso da visita do Jean-Claude Bernardet, por exemplo, que conversa com eles na ocupação. Inclusive, essa pode ser considerada a maior contribuição do filme, fazer pensar o quão importante foi o movimento estudantil naquele essa ação e como isso nos apresenta modelos melhores para a sociedade. Naqueles 40 dias aconteceram coisas que eu nem consegui aprofundar, porque o recorte é fechar naquele personagem e em questões interiores. O resultado, inclusive, foi um modelo utópico. Foram dias de cultura e ela estava totalmente aberta à sociedade.
Aliás, nesse contexto de aprendizado, há espaços para contradições do protagonista, certo?
Sim. Eles instituem plenárias permanentes, nas quais todo mundo fala. Hamlet acredita que todos precisam ser líderes. Mas, aos poucos, ele percebe que alguém precisará assumir, em algum momento, algum tipo de autoridade. Sendo assim, será ele. Mas como lidar com a representatividade do coletivo? Entretanto, isso também faz parte do amadurecimento do pensar político. Chegou no momento certo e na idade certa.
Entrevista feita em agosto de 2023, durante o 51º Festival de Cinema de Gramado.
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