Um dos jovens talentos mais disputados do cinema francês atual, Swann Arlaud está finalmente se tornando também um rosto conhecido do grande público. Após anos como coadjuvante em sucessos como Românticos Anônimos (2010) e Os Anarquistas (2017), foi indicado ao Lumiere e ao Globo de Cristal – duas das mais importantes premiações da França – e ganhou o César – o ‘Oscar’ local – como Melhor Ator pelo drama Petit Paysan (2017). Essa vitória lhe abriu muitas portas, e uma delas foi o chamado que recebeu para atuar em Graças a Deus, o mais recente longa do aclamado cineasta François Ozon. Após ter estreado no Festival de Berlim desse ano – de onde saiu com o Grande Prêmio do Júri – e ter passado pelo Festival de Las Palmas, na Espanha, onde ele e seus colegas Denis Ménochet e Melvil Poupaud foram premiados, em conjunto como Melhor Ator, o filme chega agora ao Brasil como parte do Festival Varilux de Cinema Francês. Arlaud foi convidado para vir ao Rio de Janeiro apresentar este novo trabalho, e o Papo de Cinema aproveitou a oportunidade para um bate-papo exclusivo com o astro. Confira!
Como foi lidar com um personagem que leva mais de uma hora para aparecer em cena e, mesmo assim, tem uma participação tão fundamental?
Para ser sincero, isso foi uma das coisas que me atraiu para esse projeto. Gostei muito da ideia de aparecer somente no final da trama. Até porque é algo, como se diz na França – e, pelo que sei, é um dito comum também no Brasil – foi como se fosse a ‘cereja do bolo’, entende (risos)? O roteiro, que foi escrito pelo diretor de maneira brilhante, foi construído justamente para que haja uma evolução rumo a uma maior humanização destes personagens. Eles se tornam cada vez mais viscerais. Então, se você pensar por esse lado, vai se dar conta de que tive sorte em estar na última parte da trama, pois é quando o lado humano destas figuras está mais em evidência, como se o terreno, até ali, já tivesse sido preparado.
Você, Melvil Poupaud e Denis Menochet são os protagonistas, apesar de pouco aparecerem juntos. Houve alguma combinação prévia entre vocês, ou se basearam exclusivamente no que havia no roteiro?
Não, e isso foi até curioso, sabe? Cada um fez a sua parte. Foi um processo muito pessoal, bastante individual de cada um de nós. Até por uma questão de roteiro, cada um teve o seu momento no set. Porém, mais para o encerramento da trama, quando todos se encontram, essa reunião se fez necessária. Houve momentos em que tivemos que filmar uns nas casas dos outros, por exemplo. E por uma questão de produção mesmo, estas foram as primeiras cenas a serem filmadas. Ou seja, começamos juntos, depois cada um partiu para sua própria jornada, para nos reencontrarmos apenas no final. Isso possibilitou o surgimento de uma cumplicidade entre nós, e a criação de uma familiaridade também entre os personagens. Enfim, tivemos nosso tempo juntos, mas, para a construção de cada um destes homens, foi algo íntimo, apenas com o roteiro e com o apoio do diretor, é claro.
Graças a Deus fala sobre pedofilia, e não é o único filme francês recente a discutir o assunto – Inocência Roubada (2018) é outro título sobre o mesmo tema. Coincidência ou este é, de fato, um debate recorrente na França atual?
Acho que é uma questão desta época em que estamos vivendo. Estamos passando por um momento, na França, que podemos chamar de ‘liberação da palavra’. Há muitos movimentos em curso, atualmente, que servem para denunciar situações de assédio, abuso, agressões dos mais variados tipos. E não só em relação às mulheres ou às crianças, mas também nos ambientes de trabalho ou em família. São coisas que ficaram em segredo por muito tempo, e que agora estão sendo discutidas. Um dos reflexos positivos disso é que o cinema francês tem se apropriado destes temas. O que é bastante raro, pois se trata de um debate muito atual. Geralmente, há sempre um prazo, dez, quinze anos, ou até mais, como na Guerra da Argélia, por exemplo, até se fazer um filme sobre o assunto. Os norte-americanos, normalmente, tem essa habilidade de propor no cinema elementos mais atuais, mas na França sempre houve um distanciamento maior. Dessa vez, no entanto, isso não aconteceu. Estamos tratando de um escândalo recente, que começou a ganhar as manchetes em 2015, e segue sendo julgado. Foi algo muito positivo que aconteceu.
Por causa dessa contemporaneidade, por se tratar de um assunto tão próximo, foi necessária uma pesquisa extra, ou tudo que estava sendo exposto na mídia lhe era suficiente?
Uma coisa muito importante, e que foi de extrema valia para todos nós envolvidos com esse filme, foi a existência dessa associação, a Palavra Liberada, que é real e segue atuante em casos como esse. Eles nos forneceram uma fonte quase inesgotável de consulta, pois estavam sempre à disposição. Muitos dos diálogos, das coisas que são ditas no filme são transcrições fieis do que realmente aconteceu. Pouco precisou ser mudado, ou adaptado. E estava tudo lá, ao nosso alcance. O site deles, que está online e possível de ser consultado por qualquer pessoa, conta com os relatos de centenas de pessoas, vítimas desses abusos. Particularmente, posso afirmar que li algumas dezenas desses testemunhos, mas chega-se a um ponto em que não é possível ir adiante, pois se torna insuportável toda aquela dor. Uma das coisas boas da visão do François Ozon nesse filme é que teve o pudor de não entrar nos detalhes, pois, além de se parecerem entre si, todo mundo tem já uma ideia a respeito do que acontece. Além de que seria um sofrimento extra para as vítimas. São feridas invisíveis, não dá pra mostrar na carne. Não é do tipo que você vê alguém na rua e diz: “olha lá, aquele cara foi abusado”.
Como foi para você construir um personagem em que a dor está no passado?
Foi um processo muito físico, posso dizer. O Emmanuel ainda sofre pelo que lhe aconteceu, por mais que siga lutando contra. Sem falar que, com ele, a situação foi diferente, e até mesmo mais grave, pois gerou uma deformidade com a qual precisa lidar até hoje. Então fomos pelos detalhes, como, por exemplo, a roupa que veste, sempre de jaqueta, ou o bigode, tudo que reforçasse sua masculinidade. Mas que também indicasse que a virilidade dele havia, de alguma maneira, sido ferida. Está na caracterização do personagem. Até o fato de preferir usar uma moto. São elementos que, individualmente, pouco significam, mas em conjunto tem muito a dizer. Ele está sempre com uma couraça, tentando dissimular feridas que ninguém vê, mas que as sente.
Indo além da composição do personagem, você também manifesta as consequências do que sofreu através de ataques epiléticos. Essa foi uma iniciativa tua ou é baseado em alguém real?
Interessante você comentar isso. Na verdade, este é o único elemento do meu personagem que não existia na vida real. Ou quase isso, aliás. Porque o que o Ozon fez foi combinar duas figuras verdadeiras em uma ficcional, que é quem interpreto. Ele pegou, de um, essa característica de ter o sexo torto, e, de outro, a questão das crises de epilepsia. No começo, assim que comentou comigo essas duas particularidades, achei que fosse ser impossível e que não fosse funcionar. Sabe, seria muito complicado, principalmente os ataques. Afinal, até mesmo uma crise verdadeira, para quem olha a uma certa distância, pode lhe parecer falsa, de tão impressionante e surreal o modo como ela se dá. O curioso foi que concordou comigo, revelando que também estava preocupado em como isso iria funcionar na tela, e me fez a seguinte proposta: fazer uma versão sem, e outra com as crises. Isso teve um efeito libertador em mim. Me tranquilizou na hora, pois me deixou sem o compromisso.
E como foi simular essa condição?
Pude ir com tudo, pois se não ficasse bom, ainda teríamos a outra possibilidade. Qualquer coisa, era só tirar. Isso me deixou mais à vontade para criar. Sem ter medo do ridículo. Além disso, tive a sorte de ter um amigo que conhecia alguém que sofria de epilepsia e que estudava com dedicação o caso. Através dele, que nos colocou em contato, tive a oportunidade de conversar com essa pessoa e saber mais das teorias a respeito, descobrindo as conexões com o cérebro e como tudo funciona para quem sofre disso. Outro ponto positivo foi que ela havia feito um curta no qual tinha se filmado tendo uma crise de epilepsia. Assistir a tudo aquilo foi incrível. Também conversamos com um médico, que foi convidado para assistir a filmagem de uma das cenas em que passava por isso, e na avaliação dele foi impressionante, pois era exatamente daquela forma que tudo se dava. Ao menos de acordo com a experiência dele.
Como foi trabalhar com François Ozon? Além de uma produção impressionante, de quase um filme por ano, é também autor do roteiro. Como é atuar sob o comando de alguém que está tão no domínio do que tem a dizer?
O que posso dizer, além de que foi uma das melhores experiências profissionais da minha vida? Para qualquer ator francês, trabalhar com François Ozon é algo que está na nossa lista de realizações, sabe? Todo mundo sonha em ser convidado para estar em um dos filmes dele. Então, foi com grande felicidade que recebi esse chamado. Se me convidasse para fazer uma ponta, no fundo do cenário, sem diálogo algum, aceitaria de imediato. Agora, imagina para ser um dos protagonistas? Foi inacreditável.
O que François Ozon tem de diferente?
O Ozon tem uma qualidade que é bastante rara na França, que é o fato de que ele mesmo filma cada cena do filme, está sempre atrás da câmara, junto ao diretor de fotografia, acompanhando cada segundo que é registrado. Isso torna a filmagem muito orgânica, pois pode intervir a qualquer momento e ajustar o curso se achar necessário. Está sempre muito próximo. Claro, tem atores que não gostam, que podem se sentir cerceados, mas para mim foi excelente. Até porque não fica comentando “isso tá bom, isso tá ruim”. Não há julgamento enquanto as coisas estão acontecendo. Tudo é no sentido de melhorar o conjunto. Há muito amor envolvido, e também da parte dele em relação aos atores. Isso me deu liberdade, pois sabia que, se me engasse em algum gesto ou entonação, não seria um problema. Sempre seria possível fazer de novo, e com a orientação dele. Outra coisa boa é que tudo é rápido com ele – este foi um dos raros filmes que participei em que nunca fiquei mais de 15 minutos sentado esperando me chamarem. Nossa rotina diária sempre acabava antes do previsto, e as filmagens foram encerradas com 8 dias de antecedência, justamente por causa dessa praticidade. Será algo que levarei para sempre comigo, foi um aprendizado de imensa valia.
(Entrevista feita ao vivo no Rio de Janeiro em junho de 2019. O repórter viajou a convite do Festival Varilux de Cinema Francês)
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