Em 2018, quando Jair Bolsonaro tinha acabado de ser eleito, mas ainda não havia tomado posse, o ator e diretor Caco Ciocler teve uma ideia: o que aconteceria se ele reunisse amigos e “fugisse” simbolicamente para o Uruguai, onde o ideal da esquerda permanecia vivo através da figura do ex-presidente “Pepe” Mujica? Ele conseguiria encontrar o líder Uruguaio na noite de Ano Novo?

O resultado desta empreitada é Partida (2019), mistura bem-humorada entre documentário e ficção, condensando dentro de um ônibus os diferentes pontos políticos que marcam o Brasil. Por um lado, a atriz e dramaturga Georgette Fadel se declara candidata à próxima eleição presidencial, sustentando ideais comunistas. Por outro lado, o empresário Léo Steinbruch ataca o pensamento da colega e defende a ascensão da extrema-direita ao poder. Ao longo das viagens de ida e de volta, a polarização se traduz dentro de um road movie. O Papo de Cinema conversou em exclusividade com Fadel sobre o projeto que estreia essa semana em streaming:

 

Georgette Fadel

 

O que o Mujica representa para você?
Para qualquer pessoa de tendências democráticas, e também para a esquerda, ele representa um norte de postura, de honestidade. O Mujica tem um discurso nítido, cheio de verdade. Ele é um político de grande transparência entre o que diz e o que faz. Embora no Uruguai ele não tenha efetuado uma revolução, privilegiando um governo social-democrata moderado, como ele mesmo diz, o Mujica conseguiu criar cidadãos e pequenos consumidores. A lucidez dele ao avaliar o próprio governo, com um discurso fraterno, demonstra um homem de bom senso. Ao mesmo tempo, ele representa a possibilidade de ação concreta no terceiro mundo. Ele é um símbolo possível para as esquerdas, para as lutas populares, e foi presidente de um país. Com o poder na mão, mesmo que num país pequeno como o Uruguai, conseguiu transformações importantes e avanços relevantes, além de uma autocrítica muito honesta do governo. Ele carrega esta aura de um ser humano que luta pela igualdade entre nós.

 

No caminho, vocês param na vigília pelo Lula. Ele representaria um símbolo equivalente ao Mujica no Brasil?
Sim, mesmo que o Brasil seja um país fundamental no cenário capitalista internacional, então as ameaças e pressões são muito mais intensas sobre nós do que sobre o Uruguai. As figuras do Lula e da Dilma correspondem a governantes pressionados, tanto que o vice-presidente era do PMDB! A transparência do Mujica é difícil de obter aqui. Nós tivemos que ver Dilma aprovando o projeto de Belo Monte, algo chocante para muita gente, mas ninguém imagina a pressão a que esta mulher esteve submetida. Temos um país riquíssimo, explorado pelo capitalismo internacional de maneira intensa. As lideranças aqui enfrentam antagonismos muito maiores.
É claro que a figura do Lula não pode ter um discurso tão reto quanto o Mujica. Mas guardadas as especificidades, podemos entender que o Lula promoveu projetos sociais, mesmo paliativos como o Bolsa Família e o acesso à universidade através de cotas, ou seja, avanços significativos que transformaram a cara das classes baixas. As ações inclusivas mudaram o cenário político brasileiro, fazendo com que as minorias ganhassem força de luta. Então, em algum aspecto, é comparável. As diferenças ocorrem em níveis maiores, entre os países. O Brasil tem a sorte e o azar de ser um país tão rico, porque desde a colonização nós fomos explorados como talvez nenhum outro país do mundo.

 

Partida

 

Em Partida, você se descreve como comunista. Qual é a possibilidade efetiva de apresentar pautas comunistas atualmente, quando o termo é vilanizado pela opinião pública?
É muito dura esta campanha anticomunista feita há tantas décadas. Ela nos retira o poder dessa palavra e associa o comunismo à ditadura efetuada em outras partes do mundo. Quando se pensa no comunismo, pensa-se em Stalin, no Estado forte associado a repressões individuais, repressões artísticas, repressões à imprensa. Isso corresponde ao que a média da sociedade sabe sobre o comunismo: um governo violento, restritivo de liberdades individuais. Mas quando você busca a origem da palavra, a raiz das lutas comunistas, percebe a busca pelo direito comum. É a luta pela possibilidade de discutir entre todos os trabalhadores cada passo que uma comunidade toma. Discute-se a loucura de existir posse sobre um pedaço de terra num mundo como o nosso. São discussões lindas, que passam pela ideia de feminismo, que ganha muito campo dentro da ideia de um governo comunista.
Quando penso em comunismo, quero voltar à ideia da vida como um bem comum, uma estrutura fraterna de organização política. Não falo em fraternidade entre brancos, entre ricos, entre homens, mas todos mesmo, incluindo cada partícula de vida, a exemplo da natureza e os animais. O comunismo, para mim, representa a possibilidade de viver juntos, em comunidade, em comunicação, em plena assembleia. Ou seja, nós nunca vivemos isso nesse planeta. Só viveremos isso quando a fraternidade real entre seres enquanto for a única opção, com uma estrutura política adequada, amorosa, que leve em conta o bem-estar de todos de maneira igualitária. Cometemos muitos erros na ambição pelo poder, considerando o outro como alguém que precisa ser superado. Esses pensamentos impedem um comunismo verdadeiro, onde um olharia para o outro como irmão, defendendo os direitos de todos. Precisamos lutar pela liberdade do outro: existe um problema quando luto apenas pela minha liberdade. Quando me considero comunista, penso neste comunismo original, mergulhado na raiz da palavra e despido dos preconceitos atribuídos ao termo.

 

A sua personagem se apresenta como candidata à presidência, o que parece divertido, improvável. Mas como enxerga a possibilidade de renovação na política?
A gente vai ter precisar de coragem, em algum momento, para essa renovação. Enquanto essa estrutura política institucionalizada – Congresso, Senado etc. – não for substituída por outra organização mais adequada, a gente terá que pleitear esses poderes. A gente sabe que eles foram totalmente dominados pelo pior tipo de corja humana – na verdade, nem chamo de humanos, são ratos mesmo. Este poder está dominado por pessoas sedentas pelo poder. Enquanto não derrubarmos este sistema político, sempre vamos disputar papéis dentro dele. Vejo com bons olhos uma Leci Brandão como deputada. É maravilhoso que uma artista, uma sambista de tal dimensão humana, represente linhas de bom senso dentro de uma política institucional. Tenho vontade de participar de disputas desse tipo. Não sei se o meu temperamento me permitiria ser uma boa candidata, mas talvez isso seja necessário para a transição a um mundo realmente novo. Enquanto estivermos dentro da democracia representativa, precisaremos de representantes muito dignos. Precisamos entrar na roda.

 

Partida

 

Alguns momentos muito fortes surgem entre você e o Léo. Parte dos conflitos parece espontânea, enquanto outra parte é visivelmente encenada. Em que medida aqueles posicionamentos refletem suas visões políticas reais?
O Léo é realmente um grande empresário, do tipo que reduz o comunismo às ideias mais imediatas que citamos anteriormente. Ele é um alto empresário, enquanto eu sou uma artista hippie! Grande parte daquelas discussões é verdadeira, as ideias são todas nossas. É claro que precisamos avançar naqueles debates porque estávamos fazendo um filme, e era necessário que as trocas fossem interessantes. Mas o embate é real, embora isso não faça do Léo uma pessoa a ser destratada, e ele também não tenha me destratado. Nós nos tornamos pessoas próximas na vida, mesmo que poucos argumentos dele tenham me tocado – talvez nenhum argumento, para falar a verdade. Um áudio meu para o Caco deixa claro que a gente coloriu aquilo, revestiu com uma leve ficção. Somos atores e atrizes, então é claro que aumentamos o tom: eu fui pera cima dele, aumentei o nível da disputa. Se a câmera documental se focasse na boa moça conversando com o bom moço, isso não renderia um filme. As pessoas precisam ver a dialética acontecendo, as contradições aparecendo. Assim elas podem debater sobre o filme. Tudo era verdadeiro, no fim das contas: Partida traz a discussão real entre uma artista de teatro e um alto empresário brasileiro.

 

É muito interessante o momento da ressaca, quando voltam ao Brasil prestes a ser governado por Jair Bolsonaro. Como compara essa ressaca da época com o momento político que vivemos agora?
Meu Deus, como você conseguiria representar em letras um choro profundo? Enquanto a gente estava naquela viagem, a gente sabia que o que nos aguardava na volta era tenebroso. Mas é claro que, associado ao coronavírus e a dificuldade de associação, de união, em paralelo com o genocídio do povo pobre e preto, as atitudes deste palhaço de governante trouxeram tintas de fim de mundo, algo que a gente nunca poderia imaginar. Estamos lidando com alguém desprovido de humanidade, sem princípios básicos de convivência e bom senso. Não falo nem em ressaca: fica a vontade de pular de um precipício, mas a gente não pula porque sabe a importância das nossas ações a partir de agora. Se as pessoas de bom senso desistirem da luta, o mundo fica dominado pelos ratos, por aqueles que consideram o humano enquanto bicho que compete, e ponto. O cenário atual representa uma tragédia tão intensa que a nossa luta ganha uma proporção absolutamente indispensável. Agora é o momento de aplicar tudo o que a gente aprendeu sobre fraternidade, sobre igualdade e amor. Existe a necessidade de transformar esse planeta em lugar onde não exista exceção dos cuidados. Na volta, a gente não tinha a menor dimensão do que enfrentaria. O filme ganha um tom de prólogo de tudo o que estamos vivendo hoje.

 

Caco Ciocler em Partida

 

Se tivessem filmado em 2020, imagino que as discussões dentro do ônibus seriam muito diferentes.
Talvez elas tivessem a mesma base, mas duvido que o próprio Léo ainda estivesse esperançado em relação ao Bolsonaro. Talvez ele estivesse numa frente liberalista democrática. Naquele momento, o conflito parecia se restringir a Bolsonaro contra Lula, mas agora nós temos o fascismo contra a rapa. É o fascismo mais bizarro que a sociedade já viu, opondo-se até ao Dória, ao Alexandre Frota. Estes homens, neste momento, são quase revolucionários em comparação! Estamos na trama absurda de uma história em quadrinhos. Naquele momento, ainda resistia para algumas pessoas a ideia do Bolsonaro enquanto caminho viável. Acredito que o Léo teria se transformado muito se o filme acontecesse hoje. Talvez a gente estivesse do mesmo lado, se fosse hoje, diante deste quadro intenso e acirrado.

 

Acredita que projetos como Partida – pequenos, autofinanciados, entre amigos – constituam a nossa melhor ferramenta de luta em tempos de corte de financiamentos para a Cultura?
Claro. Se a gente de fato enfrentar um esmagamento das artes e da cultura, precisamos encontrar maneiras baratas de produzir, seja com celular, com menos pessoas, com pessoas quarentenando juntas, com pouco dias, dentro de casa, na rua de casa. Talvez o teatro tenha que usar máscaras – o que já era um atributo do teatro, enfim. A comunicação entre o artista e o público precisa acontecer, mas ela não pode se restringir às redes sociais e à Internet, porque estas redes também estão nas mãos do poder hegemônico. Precisamos nos encontrar de outras maneiras, e veicular o nosso trabalho por canais de comunicação controlados por nós mesmos. Precisamos continuar criando a ideia de um mundo utópico completamente diferente deste. Isso está nas nossas mãos, e não falo apenas dos artistas e profissionais. Penso em todas as pessoas que acreditam na sensibilidade, no afeto e no alargamento da racionalidade como únicas maneiras possíveis de construir pontes entre nós.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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