No Festival de Berlim 2019, o cinema italiano foi duplamente recompensado: enquanto A Vida Solitária de Antonio Ligabue venceu o prêmio de melhor ator para Elio Germano, Fábulas Sombrias, outra produção estrelada por Germano, foi recompensada com o prêmio de melhor roteiro. Os jovens irmãos D’Innocenzo confirmaram a força da produção nacional através deste projeto tão forte quanto controverso.

A trama se passa nos subúrbios de Roma durante o verão escaldante. Diversos núcleos familiares enfrentam crises que culminam em agressões e provocam cenas de violência bastante chocantes. Em geral, as crianças e adolescentes são expostos ao sexo e à morte, o que confirma as falhas do perverso mundo dos adultos. O drama com toques de suspense constitui um dos principais destaques da 8 1/2 Festa do Cinema Italiano, exibido em versão online e gratuita entre os dias 17 e 27 de junho.

O Papo de Cinema conversou em exclusividade com os cineastas sobre o ousado projeto:

 

Os irmãos Damiano D’Innocenzo e Fabio D’Innocenzo no Festival de Berlim

 

Por que decidiram contar esta história de “fatos reais sobre uma possível mentira”, conforme descrito na introdução?
Damiano D’Inoccenzo: Nós nos interessávamos muito pelo mecanismo narrativo de uma história contada por um mentiroso. Era uma experiência que nos empolgava profundamente, graças à noção inerente ao conceito de favolacce (“fábulas obscuras”). Gostava muito da ideia do narrador de uma fábula capaz de transitar entre a mentira e a realidade. Assim, desenvolvemos um jogo, uma forma interessante de exercitar o cinema em mais de uma vertente. Quando estávamos escrevendo, pensamos na possibilidade do cinema em se mover entre a ficção e o mundo real. Era uma via de mão dupla bastante fértil.

 

Dentro desta estrutura coral, a quem pertence o ponto de vista?
Fabio D’Innocenzo: O filme se divide entre o mundo dos adultos e o mundo das crianças. Nós realizamos este filme enquanto nos encontramos numa idade intermediária entre ambos, porque estamos na faixa dos 30 anos. Temos um pé de um lado, e um pé do outro. O filme possui um ponto de vista antropológico e sociológico, e diante desta abordagem, sentimos a necessidade de contar uma história universal. Ela precisaria ser compreendida em qualquer lugar, que fosse no Brasil ou México, por exemplo. Queríamos ser capazes de observar uma transformação de vida tão veloz que às vezes nem podemos captar.

 

Fábulas Sombrias

 

Diriam que as crianças são vítimas do sistema?
Damiano D’Inoccenzo: Com certeza. Esse era o princípio fundamental da história: contar de que maneira as crianças se tornaram as vítimas dos nossos tempos. Eu e meu irmão tivemos uma infância difícil, onde sofremos algumas das coisas pelas quais nossos personagens também passam. Ao mesmo tempo, não queríamos que esta fosse uma mera denúncia social. Agora estamos imersos no mundo adulto, e conhecemos o mecanismo por trás de tantos acontecimentos desagradáveis. A violência se reproduz como um gato que morde o próprio gato: é um círculo vicioso. O gênero humano é muito complicado, e eram justamente essas ambiguidades que nos interessavam.

 

De que maneira trabalharam com o elenco jovem os temas graves, como o abuso?
Fabio D’Innocenzo: Trabalhamos da forma mais simples que podíamos, evitando erguer paredes entre eles. A ideia era estabelecer conversas capazes de revelar o aspecto humano por trás de cada cena. Nós nos colocamos à altura das crianças, de igual para igual, e tivemos uma experiência incrível. Foi algo muito esclarecedor para nós também, aprendemos bastante com isso.

 

Qual é o espaço para o humor dentro de uma história tão sombria?
Damiano D’Inoccenzo: A meu ver, em determinadas histórias, a luz constitui a forma mais adequada de explorar a escuridão. Nem sempre é necessário mostrar uma história superficial. Para mim, as histórias mais perturbadoras são aquelas que nos revelam boa parte da realidade, sendo reconfortantes ao mesmo tempo por se aproximarem de uma vivência com a qual podemos nos identificar. O nosso cinema se aproxima muito da vivência real, porém através de símbolos que se renovam ao longo do tempo. O mais importante era propor uma reflexão, ao invés de simplesmente trazer uma história para entreter o espectador.

 

Fábulas Sombrias

 

Existe uma moral no fim dessas fábulas sombrias?
Fabio D’Innocenzo: Sim, claro. A moral não é verbalizada como tal, porém ela se torna clara ao longo do filme. É uma forma bem precisa de se instaurar. Se nós prestarmos atenção às raízes das nossas histórias, teremos um futuro melhor. Às vezes a interpretação destas histórias antigas está subordinada a um poder retrógrado, o que nos conduz em direção ao fracasso. Por isso, a moral das fábulas é extremamente simples, mas muito moderna.

 

As fábulas costumam ter um caráter atemporal. Como o filme reflete questões específicas da Itália contemporânea?
Damiano D’Inoccenzo: De moderno, temos os obstáculos atuais da Itália. Estamos saindo de uma década horrível, ligada ao governo Berlusconi, e desde então vivemos outro período difícil com Salvini – um período de machismo. Esta é uma época em que se encoraja o homem a nunca ser infeliz, nunca se mostrar frágil. Ele precisa ser forte, preocupado com o desempenho. O aspecto do tempo, em relação às fábulas, traz de atemporal os mecanismos humanos, como a violência e a força bruta utilizada em momentos de dificuldade e vulnerabilidade. Nós operamos num terreno simbólico, em equilíbrio entre comportamentos modernos e forças atemporais. Em paralelo, nunca desejamos ser moralistas, e espero que esta impressão jamais chegue ao espectador.

 

Fábulas Sombrias

 

O filme foi exibido no Festival de Berlim presencialmente, e agora chega ao Brasil inicialmente em formato online. Como percebem a maneira como o cinema se adaptou à pandemia, e as perspectivas de retomada de atividades em salas?
Fabio D’Innocenzo: Enquanto espectadores e realizadores, prestamos atenção especial aos filmes que estrearam a pandemia, incluindo obras europeias importantes. Chegamos a assistir a alguns filmes no cinema durante este período, e sabemos que a experiência cinematográfica na sala de cinema jamais poderá ser reproduzida na televisão de casa. Foi muito discutido neste período o fato de que existe uma experiência especial dentro da sala de cinema. Quando pensamos em momentos marcantes da nossa vida ligados ao cinema, notamos que eles sempre refletem o cinema na forma de uma experiência compartilhada. Nunca poderemos desprezar as trocas que ocorrem apenas dentro da sala de cinema.

 

Um projeto ousado como Fábulas Sombrias tem caminho aberto para ser produzido, viabilizado e distribuído na Itália?
Damiano D’Inoccenzo: No nosso país, não existe uma abertura para o cinema sem alinhamento com a estética específica da televisão. Então a decisão de continuar a contar histórias diferentes é bastante arriscada. Eu e meu irmão nos divertimos muito, e decidimos explorar os temas mais controversos dentro da sociedade italiana. Nós fizemos um filme que gostaríamos de ver como espectadores – jamais faríamos algo que não nos interessasse pessoalmente. Assim, o filme não soa incoerente. No entanto, sei que trouxemos temas controversos. A Itália tem dificuldade de encarar certo tipo de cinema, por isso, existem poucas vozes novas no cinema italiano. É uma pena.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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