Nascido no dia 7 de março de 1970, Xavier Giannoli é um roteirista e diretor em plena ascensão no atual cinema europeu. Seus primeiros trabalhos são curtas-metragens de 1993, quando tinha pouco mais de vinte anos de idade. De lá pra cá tem atuado tanto no cinema como na televisão, não só com seus próprios filmes, mas também produzindo outros bastante elogiados, como a comédia dramática A Guerra Está Declarada (2011), selecionada para o Festival de Cannes e indicada ao César, o Oscar do cinema francês. Giannoli, aliás, foi premiado em Cannes e no César com o curta L’Interview (1998), e já esteve na disputa da Palma de Ouro em mais duas ocasiões – Quando Estou Amando (2006) e No Princípio (2009) – enquanto que soma até o momento um total de dez indicações em sua carreira ao prêmio máximo da cinematografia francesa. Sua última presença na festa foi por seu trabalho no drama Marguerite (2015), que recebeu 11 indicações – entre elas, a Melhor Filme, Direção e Roteiro – e levou quatro estatuetas (Melhor Atriz, Figurino, Direção de Arte e Som). Destaque também no Festival de Veneza 2015, Marguerite chega agora aos cinemas brasileiros, e o Papo de Cinema aproveita a oportunidade para publicar com exclusividade no país uma conversa inédita e exclusiva com o diretor, cortesia da Mares Filmes. Confira!
Como surgiu este filme?
Há uns dez anos ouvi no rádio a voz de uma improvável cantora de ópera que interpretava A Rainha da Noite, de Mozart, cantando totalmente desafinada. Foi muito engraçado, surpreendente. A gravação era arranhada, antiga e misteriosa, como se “vinda do além”.
Quem era essa cantora?
Descobri que ela se chamava Florence Foster Jenkins e que havia vivido nos Estados Unidos durante os anos 1940. Ela era rica, apaixonada pela música e pela ópera e, sobretudo, completamente inconsciente da sua incapacidade vocal. Ela tinha o hábito de cantar diante de uma plateia de convidados e ninguém do seu círculo de relações jamais havia lhe dito que ela desafinava totalmente, seja por hipocrisia social, interesse financeiro ou simplesmente falta de coragem… A situação já era muito engraçada, com alguma coisa de cruel que me interessei em explorar.
Você então fez uma pesquisa…
Em Nova York encontrei muitos recortes de jornais falando de sua improvável “carreira”, da sua excentricidade. Falavam mesmo de um grande concerto no final de sua vida, quando se apresentou na imensa sala do Carnegie Hall. Também encontrei uma gravação onde ela interpreta várias árias clássicas, sempre de forma ruim e hilariante. No disco havia uma foto dela com asas de anjo nas costas e um diadema de rainha na cabeça. Ela sorria para a câmera de um modo ao mesmo tempo inocente e confiante. Aquela expressão me intrigou por muito tempo… Então escutei aquele disco muitas vezes ao longo dos anos, pensando naquele sorriso e deixando minha imaginação ser tomada pelos elementos da minha pesquisa. Escrevi uma primeira versão de roteiro e depois fui fazer outros filmes, guardando sempre comigo aquela foto e a voz misteriosa. Eu sentia que aquela voz imperfeita tinha algo a me dizer, um segredo.
Marguerite não é, no entanto, um filme biográfico…
Não, é uma evocação livre de uma personagem que realmente existiu. É bem comparável ao trabalho que fiz para No Princípio (À L’Origine, 2009): comecei com uma pesquisa minuciosa, reuni uma documentação enorme e escrevi uma história romanesca, dialogando com minha colaboradora Marcia Romano para encontrar as linhas de força da trama. O importante é ter uma visão pessoal, propor um ponto de vista sobre a verdade humana que se exprime num destino bastante original… e depois sentir-se livre para fazer cinema. Minha convicção é de que precisamos da ficção para tentar compreender e sentir a realidade do mundo e dos seres humanos. Eu não me contentaria com uma abordagem documental nem com um puro trabalho de ficção. Sempre se busca alguma coisa do personagem assim: entre a verdade e a mentira, entre a vida do ator e a figura que ele interpreta, a invenção de si mesmo. Durante as filmagens, fiquei sabendo que havia o projeto de um biopic hollywoodiano (Florence: Quem é essa Mulher?, 2016). Essa abordagem, de toda forma, não seria jamais a minha.
Por que a escolha de transpor a história para a França dos anos 1920?
Durante minhas pesquisas, descobri, na biblioteca da Opéra de Paris, fotos de divas do início do século. Mulheres magníficas interpretando, num estilo bastante “expressionista”, alguns tableaux vivants de óperas célebres. Descobria essas mulheres sublimes enquanto escutava a voz desastrosa da minha diva desafinada. Era um contraste engraçado e intenso, até mesmo poético… Minha cantora se considerava uma delas mas não tinha nenhuma de suas qualidades vocais. Foi então que tive a ideia das fotos e foi quando o coração do meu filme começou a bater. Sabemos também que os anos 1920 são um momento importante na aventura da liberdade, tanto na arte como em questões de costumes. Eu queria que minha personagem se apegasse a alguma coisa de um velho mundo que a impede de se realizar e do novo que não irá vê-la. Eu buscava um movimento ao mesmo tempo amplo e íntimo.
O que toca você na figura de Marguerite?
Adoro personagens que têm uma ideia fixa, os obcecados, porque eles conduzem o filme inteiro através do seu impulso e lhe conferem uma tensão, um ritmo, um ponto de fuga. Marguerite vive uma paixão, em todos os sentidos da palavra: o aprendizado do sofrimento e a alegria de viver pela música. Ela canta desastradamente mal, mas sentimos que expressa uma necessidade feroz de viver. Marguerite se parece conosco porque todos precisamos de ilusões para viver.
Ela encarna também uma coisa singular que se perdeu: a paixão desinteressada pela arte.
No entanto, a paixão não garante o talento, não tem nada a ver. Escrevi a personagem depois de ter passado dos 40 anos e vivido muitas experiências dolorosas nesses últimos anos. Tive necessidade de encontrar através do humor uma distância daquilo que a vida pode ter de difícil, o sentimento de traição e fracasso, as hipocrisias e maldades da vida social, o eco distante da minha educação cristã que em nada simplifica minha relação com o sofrimento, e ainda por cima essa dúvida que aumentava… Eu tive necessidade de rir disso tudo! Quando Marguerite canta, para mim, isso é também um grito libertador de vida.
Você sente que realizou uma comédia?
Há qualquer coisa de hilariante em vê-la cantar desafinada grandes árias clássicas, circulando com sua inocência comovente em meio aos cínicos. Mas o filme é, antes de tudo, uma história de amor entre um homem e uma mulher que procuram uma forma de continuar se amando. Então, sim, espero que tenhamos vontade de rir diante das aventuras de Marguerite, mas espero igualmente que, entre as risadas, toda vida humana seja avaliada: o desejo e a morte. Marguerite termina nos braços do homem que ama e que termina por amá-la tarde demais, como numa ópera. É a crueldade que impede o melodrama complacente ou a comédia fácil.
Quando você pensou em Catherine Frot para interpretar Marguerite?
Eu queria uma atriz que impusesse uma presença física, como no cinema americano que adoro, e que pudesse encarnar a inocência sem ser uma garota. Catherine tem uma efervescência juvenil e honesta, uma generosidade aberta que a coloca em perigo em meio aos cínicos e assim adiciona tensão às suas cenas. Ela tem também uma aura popular que aprofunda a emoção da personagem ao marcar sua diferença dos dignos aristocratas do seu meio que a desprezam e das divas intocáveis que são sua paixão. Acompanhei Catherine em muitos filmes, mas o que me deu o estalo foi descobri-la no teatro fazendo Dias Felizes, de Samuel Beckett. Eu me lembro de uma cena hilariante quando ela fala com uma formiga e ali, de repente, estava Marguerite, sem dúvida. Subitamente, vendo a formiga, ela diz: “Mas existe vida aqui!” Ficou bastante óbvio.
Para ela também?
Ela logo aceitou o papel e lutamos durante longos meses para conseguir financiamento para o filme, fazendo muitos sacrifícios e buscando soluções. Fiquei muito tocado ao ver como ela se reservou para este projeto. Acredito que o papel é importante para ela, mas não quero saber exatamente o porquê. Espero que o público possa assim descobri-la no cinema. Atores tem um brilho particular quando se fazem mais raros.
No entanto, ela raramente interpretou esse tipo de personagem e de emoções.
Eu queria também fazer com que ela se superasse, que se abandonasse em cenas de emoção e loucura inéditas para ela. Porque esse filme é, acima de tudo, o retrato de uma mulher num momento frágil de sua vida. Durante as filmagens ela inventou, sugeriu e sobretudo me obrigou a ser simples e concreto. Ela sabe que alguma coisa no cinema acontece ali, no que vai circular entre os corpos dos atores, na sua simples presença física, na evidência dos seus gestos. Há certos olhares dela que continuam a me afetar, como quando acabou de descobrir que é traída pelo marido há muitos anos e acaricia o rosto dele, dizendo simplesmente: “Meu marido…” Acho que o desempenho dela é realmente profundo, perturbador, conseguindo uma harmonia entre registro que, a priori, são dissonantes: o riso e a emoção.
Você escolheu o resto do elenco depois de escolher Catherine?
André Marcon é um grande ator e fiquei contente de propor a ele esse papel. Ele imprime uma força ao viver um personagem, ainda que seja covarde e fraco, mentiroso enquanto homem. Ele tem uma presença inusitada, com uma voz profunda e complexa, uma sedução viril com seu casaco de urso e esse olhar às vezes possuído por uma sensibilidade que se revela sem disfarces. É um dos poderes angélicos de Marguerite: fazer as pessoas em torno descobrirem a si mesmas, salvá-las das mentiras de suas vidas enquanto sacrifica a sua própria.
O marido não é o primeiro “espectador” de Marguerite, seu cúmplice?
A mentira é um espetáculo que precisa de várias pessoas. E trata-se de uma situação muito cinematográfica, porque ela embarca o espectador na sua lógica, no seu delírio… E acho que o poder de manipulação das palavras e das imagens é um tema que atravessa o filme e vem até hoje, ao mundo em que vivemos. O mundo da ilusão publicitária, da mentira política, do banho de imagens através do qual experimentamos esta “sociedade do espetáculo”… Foi nesse momento preciso que criei essa personagem, na sua relação complicada com a realidade, buscando sua verdade. Marguerite finalmente consegue fazer com que seu marido apareça na sua última foto de diva, no seu universo de ilusão.
Como você pensou em Michel Fau?
Eu escrevi o papel para ele, com sua voz na minha cabeça. Do seu “Récital emphatique” às suas encenações de Guitry ou Montherlant, sempre tive grande respeito e admiração pela sua liberdade e seu ecletismo. Poucas vezes me diverti tanto criando um personagem junto com um ator. Atos Pezzini (uma homenagem à minha origem corsa) é detestável, porém cativante, porque Michel encontrou uma maneira de torná-lo complexo e imprevisível. Depois do primeiro concerto no castelo, quando ele se encontra no carro com Madelbos, a forma como ele diz “na minha casa, em Boulogne…” faz sentir a profunda solidão desse animal social engraçado e decadente.
Há também muitos papeis secundários desconcertantes…
O papel de Madelbos, o chofer-fotógrafo, é interpretado por Denis Mpunga, um ator belga que eu gostaria de elogiar porque ele confere uma profundidade inesperada a um personagem que, a princípio, apenas ouve e observa. Marguerite é sua musa, e um laço delirante e inquietante os une. É ele que a leva de encontro ao seu destino de diva improvável. Seu personagem questiona também o que é a criação. Ele sublima a vida da sua musa ao conduzi-la a uma morte digna da heroína que ela sempre sonhou ser. Não sei se ele a mata ou a salva… mas ele completa a sua “obra”. Além disso, de Christa Théret a Sylvain Dieuaide, de Aubert Fresnoy a Sophia Leboutte, a mulher barbada, bem como todos os outros, nós trabalhamos um pouco como uma orquestra ao redor de Catherine. Acho que uma escolha de elenco é rica quando os atores nunca apareceram ou são pouco vistos no cinema. Os papeis secundários são aqueles que dão uma sensação de veracidade ao filme e eu queria que todos fossem fortes e inesperados.
Marguerite é seu primeiro filme de época…
Meu filme anterior se passava no universo das mídias contemporâneas e procurava captar algo da modernidade que me fascina e apavora. Fiquei contente ao mudar tudo e me aventurar num universo radicalmente diferente. Não queria fazer uma reconstrução e, sim, uma evocação pessoal daquela época. Temos o castelo inusitado de Marguerite, como uma bolha branca e protetora que contrasta, por exemplo, com os escritórios “modernos” de linhas retas e depuradas do jornal onde ela parece imediatamente deslocada, perdida. Mas acho que o trabalho se mantém simples e contido. O que a história tem de atemporal me interessa mais do que uma reconstituição hollywoodiana, que eu sequer teria os meios de realizar. Os filmes de época minimalistas são muitas vezes os mais belos. Também logo tive a ideia do grande retângulo negro diante do qual o professor faz Marguerite praticar. Um fundo abstrato, fora do tempo e das épocas, como um retorno ao essencial: à verdade da personagem. Da mesma forma, eu quis simplificar as linhas dos figurinos, ser simples e elegante, em harmonia com os personagens e seus humores, sem jamais apresentar uma visão pitoresca dos “anos loucos”.
O trabalho com a luz parece ir na mesma direção…
Com meu diretor de fotografia, o flamengo Glynn Speeckaert, nós buscamos uma imagem sem muitas cores, simples e contrastada, com alguns toques de vermelho-sangue: o lenço da amante, o leque e a cortina da Opéra — que parecem gritar sua cor da mesma forma como Marguerite grita no palco. Eu precisava desses efeitos de ruptura, tanto nas cores como nos sons, para que alguma coisa de orgânica ganhasse vida. Nós usamos lentes dos anos 1950 que tornam a luz sensivelmente difusa e dão ao filme uma textura singular, às vezes com reflexos inesperados, como clarões, dissonâncias na imagem que eu também queria manter “viva”.
Como você escolheu as músicas?
Primeiramente, havia o repertório de Marguerite, composto de grandes árias de ópera que uma grande soprano deveria ter cantado, como Casta Diva, da ópera Norma, de Bellini. Árias muito técnicas que ela, evidentemente, era incapaz de interpretar… Mas queria também que o filme fosse uma experiência musical “total” que corresponde ao meu gosto e que queria compartilhar. Temos a música barroca de Vivaldi e Purcell, temos jazz, as harmonias mais “modernas” de Poulenc e Honegger, temos um didgeridoo australiano e música indiana, um piano que é martelado pesadamente ou no qual se toca Bach, temos Mozart reinterpretado a capella pelos Swingle Singers e ainda King Arthur, de Purcell, reorquestrado pelo grande Michael Nyman, os gritos de um pavão ou explosões de motores, e por fim a voz de Marguerite como um buraco negro onde todos esses sons se perdem… ou se encontram. Não sei.
Como você “inventou” a voz de Marguerite?
Catherine trabalhou muito tempo com uma grande professora para encontrar a atitude, os gestos, a expressão de uma cantora lírica. Porque, ainda que cante mal, Marguerite trabalha muito e isso precisava ser visto… O problema é que Catherine tem uma voz belíssima, conseguida com um longo estudo de canto, enquanto eu precisava de um caos ao mesmo tempo engraçado e tocante — o que é tecnicamente muito complicado. Consequentemente, a voz de Catherine precisava de uma dublê quando o canto se tornava muito perigoso para a sua garganta. Uma cantora “de verdade” então nos emprestou sua voz, e trabalhamos muito para conseguir a emoção e a comédia que procurávamos com cada dissonância. Com os engenheiros de som, nós ainda fizemos um trabalho gigantesco para que, nas telas, Marguerite encarne sem nenhuma dúvida possível essa voz bastante particular, que eu queria revelar ao público com um quê de segredo, de mistério.
Por fim, você muitas vezes utilizou referências à musica, como “dissonância”, para falar do seu trabalho neste filme.
Na vida, na música e na mise en scène, acho que acima de tudo existe a questão da harmonia ou do desacordo entre os corpos que se deslocam ou sentimentos que se buscam, entre a vida que sonhamos e aquela que levamos. Filme após filme procuro chegar ao essencial, fazer coisas que me permitirão criar, na montagem, relações de intensidade, movimentos dramáticos ou rupturas visuais. Tento não me proibir nada, nem momentos em que capto surpresas durante as filmagens, nem movimentos bastante construídos como, por exemplo, montagens em cima da música. Então me atenho a realizar o filme com um olhar, uma visão. Porque preciso dos meios do cinema para tornar minha história viva, para tentar conduzir o espectador, assim como Marguerite se deixa levar pela música. Dediquei minha vida ao cinema e a cada filme sinto, como meus personagens, uma inquietação, um temor diante da realidade que fascina e se revela. Sei que a minha mise en scène se baseia nesse movimento: um desejo de utilizar os meios de ilusão do cinema e uma vontade de ir atrás da verdade humana do personagem.
(Entrevista exclusiva no Brasil cedida pela Mares Filmes ao Papo de Cinema)
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