Leandra Leal simplesmente não para. Atriz vencedora de 3 troféus no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro (o Oscar da produção nacional) e de um Prêmio Guarani, ela já ganhou também dois kikitos no Festival de Gramado, um Calunga no Cine PE de Recife, dois Passistas no Festival do Rio e um Prêmio Fênix – o Oscar do cinema latino-americano. Incansável, ela não só estreou há pouco como diretora com o documentário Divinas Divas (2016) – premiado no Festival do Rio pelo Júri Popular e como Melhor Filme de temática LGBT, e também como Melhor Filme pela Audiência no SXSW Film Festival, nos Estados Unidos – como, desde o início deste ano, já marcou presença em nada menos do que três longas diferentes. Primeiro, foi uma participação especial na comédia La Vingança (2016), de Fernando Fraiha. Depois, apareceu ao lado de Rafael Cardoso no terror O Rastro (2017) – e a gente conversou com a atriz a respeito aqui. Voltou no romance Love Film Festival (2017), um projeto que começou em 2010 e somente agora chegou às telas. E tem mais: logo estará no aguardado Bingo: O Rei das Manhãs (2017), ao lado de Vladimir Brichta. É mole ou quer mais? Para dar conta de tudo isso, nós conversamos com a estrela em duas etapas – primeiro ao vivo, no final do ano passado, na capital paulita, durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, após a première de Divinas Divas. Depois, há algumas semanas, por telefone, pouco antes da estreia de Love Film Festival. Abaixo você confere esses dois bate-papos na íntegra!
Primeiro quero te dar os parabéns pelo Divinas Divas, filme a que assisti no Festival do Rio e achei muito divertido, além de emocionante. Também senti uma certa melancolia nele. Como foi, nessa estreia como diretora, lidar com sentimentos tão adversos numa mesma história?
Ah, assim é a vida, né? Queria muito apresentar essas pessoas, mas de uma forma complexa, porque são figuras que volta e meia são alvos de preconceito, sempre representadas por estereótipos, e queria ir além disso. Busquei a diversidade humana. E a vida delas tem muita alegria, irreverência e glamour, mas também tem o outro lado. Acho que é isso que humaniza. Tem uma reflexão sobre a vida, e você está certo quando fala em melancolia, pois acho natural, quando você está mais velho, sentir presente essa coisa da perda, das pessoas próximas que se foram. Tem uma tristeza natural em meio a todas aquelas plumas e paetês.
Ao assistir ao Divinas Divas, temos a impressão que esse filme foi um legado que você recebeu da sua mãe, do seu avô. A ideia de tocar esse projeto adiante lhe surgiu de forma natural ou chegou a pensar em outras formas de resgatar estas histórias?
Ah, passou de tudo pela minha cabeça. Não sabia muito bem o que fazer, se seria uma ficção, ou um documentário, e nem como seria o meu envolvimento, se ia só escrever, produzir, se chamaria alguém para dirigir ou não. Tudo isso porque tem muitas histórias aqui reunidas, certo? Como fazer justiça a todas elas? Foi quando comecei a pesquisar, a estudar todas as possibilidades. Pensei até em fazer uma peça de teatro, quem sabe remontar o show original delas, numa nova versão? O que poderia ser tudo isso? Até que cheguei à conclusão que seria meu primeiro filme, e como um documentário, pois me pareceu o formato mais honesto, não só comigo, mas também com elas.
Você sempre teve vontade de atuar também atrás das câmeras?
Foi um conjunto de fatores, digamos. Acho que só eu poderia fazer esse filme. Mas não é também algo que “Ah! Só eu posso, porque só eu sei”. Não, nada disso. É porque realmente existe uma relação delas comigo, deste tema com a minha história. É um filme que fala muito sobre mim, e também da relação íntima que tenho com cada uma destas ‘divas’. É algo muito forte. Mas, além disso, já produzo há muito tempo, desde os 18 anos. Ou seja, estou realizando outras funções, sempre pensei no cinema além do meu lugar como atriz. E, dirigir, era algo que algum dia ia acontecer. Não tinha pressa, estava apenas esperando por um tema que fosse caro para mim, que falasse comigo.
Como foi ter participado do La Vingança?
Isso é destino, né? Sou muito amiga do Jiddu Pinheiro, que escreveu o argumento junto com o Fernando Fraiha. A ideia do filme foi ele, aliás, e os dois fizeram tudo juntos. Nós somos amigos de uma vida toda, acho que desde os 15 anos, então acompanhei o nascimento do projeto, estive por perto desde o início. A gente tem uma parceria grande. Quando ele me convidou para fazer, disse “finalmente, né?”. (risos) E amei o filme, achei super divertido, inteligente e sensível. Mas a minha participação é muito pequena, tenho basicamente duas cenas, uma no início e outra no fim. Foi um carinho que eles me fizeram, e adorei.
Outra pessoa que me disse que vocês são irmãos de coração e alma foi o Julinho Andrade…
Cara, ele é um talento puro, né? Juro por Deus, tudo que ele quiser fazer, vai fazer bem. É um baita parceiro. Ele faz muita coisa caseira e filma amigos, faz videoclipes, é um cara inquieto, nunca está parado. Logo que comecei, quando pensei em filmar o show das divas, pensei de imediato que quem faria a câmera do camarim seria o Julinho. Afinal, ele é ator, entende desse negócio de bastidores, conhecia esse olhar que eu tinha, de ter estado ali criança. Ele é, mesmo, meu irmão de alma, sou madrinha do filho dele. É meu amigo desde O Homem que Copiava (2003), que fizemos juntos. Foi por isso que o chamei e entreguei isso para ele, que me recebeu de braços abertos.
A tua proximidade com as divas vem desde o berço. Teve algum momento em que precisou se impor como realizadora, pra captar um olhar mais crítico do filme?
Claro, o tempo todo. Mas vou dizer, senti isso, de verdade, principalmente na fase da montagem. A gente ficou dois anos e meio montando o filme Então, teve um primeiro momento de ver o material por completo, tudo que havia sido captado, e foi somente aí, nesse exercício diário, que o filme começou a surgir de verdade. Tivemos um tempo pra organizar um bom roteiro e selecionar o que queríamos contar sobre cada uma delas, o que interessava de fato ou não. Aí já foi um distanciamento que se impôs naturalmente. Afinal, precisava saber o que esse material me dizia. É um filme geracional, além de tudo.
Tem realizador que depois que o filme está pronto passa logo para o próximo, enquanto outros preferem acompanhar tudo de perto, porque acha nunca tá pronto. Você saiu do Divinas Divas ou continua com vontade de seguir mexendo nele?
Penso que cada filme é um retrato de toda a sua potência e também do seu limite. Já senti isso também como atriz. Você tem que ser generoso consigo mesmo pra entender. Ao menos comigo é assim, tento fazer o máximo daquilo que está ao meu alcance. Mas, na real, não sei se isso é o melhor a ser feito. Então, provavelmente amanhã vou ver o Divinas Divas e achar que tinha coisas a melhorar. Mas, nesse momento, ele é tudo o que eu podia ter feito. Ou seja, está exatamente do jeito que eu quis.
Como tem percebido a recepção do público?
Pois então, uma coisa que me deixou muito feliz foi o que aconteceu no Festival do Rio, que foi o primeiro que participamos e onde ganhamos o prêmio do júri popular. Para mim, era o que mais queria ganhar. Tinha muita dúvida de como o Divinas Divas chegaria até o espectador, se encontraria sua audiência ou não. Afinal, ele trata de dois temas muito tabus no Brasil, a questão do gênero e a velhice. Então, tinha muito receio. Queria ver como as pessoas iriam recebê-lo, se tinha conseguido fazer que entendessem o meu olhar sobre aquelas figuras. Fui me acalmando quando percebi que o filme estava cumprindo sua missão, que as pessoas estavam se emocionando e se envolvendo com o que acontece na tela. Parece que trata de assuntos muito diferentes, mas não é tão estranho assim. Ele vai entrando aos poucos, de modo suave, delicado. Queria exatamente isso. Até quem não compartilha com a experiência que tenho acaba sendo tocado. Vi coisas lindas. Desde homossexuais que chegaram com depoimentos incríveis, até os mais alheios à causa.
Como que foi equilibrar o tempo de tela? Porque a Rogéria, é sempre o primeiro nome, aquela que todos conhecem. Mas todas possuem o mesmo espaço em cena, não?
Isso, realmente, foi muito difícil. Tirei tanta coisa do filme que tenho uma série inteira de televisão pra contar sobre cada uma delas em episódios, entende? A gente fez uma consultoria no meio do processo, durante o primeiro corte, e isso foi super importante para extrair o melhor de cada uma delas, para ajustarmos o nosso foco. O critério era o que mais emocionava em cada uma. Assim, conseguimos definir sobre o que era o filme e escolher que ficava e o que saía. Queria justamente esse equilíbrio que você mencionou, e acho que consegui. Fico feliz quando as pessoas percebem que o filme é sobre amor, acima de qualquer coisa. É o meu relato, e foi um processo muito emocional. É um filme muito amoroso. Não é antropológico, cerebral, resultado de mutios estudos. Ele veio lá de dentro, do meu âmago. Sou eu, em suma.
Bom, vamos falar agora sobre o Love Film Festival. Como surgiu esse convite?
Tem uma coisa que tenho falado direto a respeito. Esse filme demorou muito para ficar pronto, mas desde o início o projeto era esse! Todo mundo que tava envolvido sabia que seria assim. Não demorou seis anos por uma questão de produção, de atraso ou qualquer outra coisa. Sempre foi para ser assim. A gente já sabia, a ideia era essa, de ir filmando com intervalos, nos festivais. Quem pensou nisso foi a Manuela Dias, a diretora e roteirista. E ela estava em um festival de cinema, que é um ambiente quase mágico, quando todo mundo para o que estava fazendo para ver e celebrar o cinema, os seus trabalhos e os dos outros, dos amigos. Ela reuniu as pessoas que precisava assim, chamou um Diretor de Arte, um de Fotografia, me chamou, o Manolo Cardona, a Nanda Costa. E era um convite irrecusável, uma oportunidade única como atriz, de entrar em um projeto com todo esse risco, por tanto tempo, mas com tanta gente legal ao mesmo tempo. Foi uma grande aventura, e como adoro desafios, não tinha como ficar de fora.
Fale um pouco como foram as filmagens?
Todas as cenas foram filmadas apenas nos quatro festivais propostos – em Portugal, no Rio de Janeiro, na Colômbia e nos Estados Unidos. Nenhuma filmagem extra foi necessária. Então, todo tempo que tínhamos para o filme foi super bem aproveitado. A Manu nos entregava um roteiro, mas tudo era bastante aberto ao improviso, justamente para ser o mais natural possível. Seguíamos as orientações dela e os perfis dos personagens, e a partir disso íamos criando, todos juntos. E entre cada festival haviam intervalos de tempo de quase um ano entre um e outro, em que largávamos tudo e voltávamos a fazer o que estávamos fazendo antes. Ou seja, quando nos reencontrávamos, era uma alegria, uma família que se reunia. Foi uma experiência incrível, pois crescemos, mudamos e fomos nos descobrindo junto com os personagens.
Como foi atuar com Manolo Cardona?
A gente não se conhecia. Ele é muito famoso na Colômbia, é o Rodrigo Santoro de lá, eu acho. Nos conhecemos em cena, e assim como o Adrián e a Luzia, nossos personagens, a gente foi ficando cada vez mais íntimos, pois terminou que passamos anos juntos, né? Foi demais, ele foi um grande parceiro. Nesse filme as filmagens tiveram uma intensidade tão grande, com todo mundo junto, com o mesmo propósito, que virou uma grande família. Fazer o Love Film Festival foi um acelerador nas nossas vidas, pois hoje somos todos muito próximos. Durante as filmagens em Cartagena eu não participo, pois foi bem quando estava filmando a novela Cheias de Charme (2012), que me tomou um tempo incrível. Foi quando a Nanda foi chamada para participar. E as histórias que eles contam me deram muito ciúmes (risos), pois pelo jeito foi incrível. O Manolo é uma grande celebridade, mas é, acima de tudo, um parceiro e tanto que nunca esquecerei.
Falando sobre isso, você atua em espanhol e em inglês neste filme. Muito complicado?
Bom, espanhol não, né? Aquilo é um portunhol, na melhor das hipóteses (risos). Mas vamos combinar, esse é o perfeito retrato de quem está habituado ao circuito dos festivais, de quem tem essa vivência, e foi importante passar isso para o espectador. Uma hora estamos aqui, na seguinte temos que viajar, e vamos nos ajeitando conforme as circunstâncias. Meu inglês é ok, meu espanhol é sem vergonha. Mas a gente se entende.
Uma coisa curiosa em Love Film Festival é que vocês filmaram em festivais de verdade, com a galera que estava lá apresentando seus filmes. Foi difícil contar com a colaboração de todos?
Nossa, muito pelo contrário. Pessoal que costuma frequentar festival de cinema é a melhor figuração que existe, porque já estão todos na mesma emoção, todo mundo quer ajudar. E a gente foi muito mala, nossa (risos). A gente invadia a programação, explicava rapidamente o que estava acontecendo e o que queria fazer, e o pessoal embarcava junto. Foi incrível e, ao mesmo tempo, perfeito.
O que mais lhe atraiu neste projeto?
Tudo, para ser bem sincera. Era uma proposta irrecusável. Tinham as viagens, os festivais. Na real, o que mais me atraiu foi a oportunidade de filmar algo com intervalo, com todos estes espaços de tempo. Era algo que queria muito fazer, pois era uma possibilidade que já rondava a cabeça de muita gente, até que a Manu chegou e realizou. Fiquei muito satisfeita com o resultado e com todo o processo.
Mas tudo ocorreu exatamente como havia sido planejado lá no início?
Não, isso seria impossível. Durante todos estes anos, me envolvi com vários outros projetos, no cinema e na televisão, não só atuando, mas também atrás das câmeras. Teve momentos que foram muito difíceis pra mim, e os quais só consegui superar por causa do amor imenso que sinto por esse filme. Um bom exemplo foi a parte da Colômbia, que seria minha, e tive que abrir mão. Foi um baque no início, quando soube que iriam continuar sem mim, com outra atriz, com outra história. Foi um choque. Mas a gente aprende, até se dar conta que o importante é o filme, não eu ou você. E hoje, quando assisto ao Love Film Festival e me vejo tão menina no começo, e o que sou hoje, percebo o quanto tudo isso foi necessário para ser a pessoa que me tornei.
Love Film Festival surgiu de uma realizadora, os dois primeiros nomes do elenco são você e a Nanda Costa. Ao mesmo tempo, tem essa questão das duas estarem disputando o mesmo homem. Queria que falasse um pouco sobre isso e sobre o papel da mulher no cinema nacional hoje.
A Luzia é uma mulher super forte, contemporânea. Ela não abre mão de ser quem é, do que está buscando. E isso tem um preço, é claro. Por isso ela entra em crise, tem desejos, vai lá e os realiza, sem nenhuma culpa. Não a acho lunar, de jeito nenhum, como se ela estivesse orbitando em volta desse homem. Ela gostou muito dele, sim, mas fez suas escolhas. A questão, ali, me parece ser muito mais entre essas duas mulheres do que delas em relação a ele. Isso, no entanto, não é uma questão só do cinema brasileiro. A gente tá discutindo, falando sobre isso, e é uma necessidade do mundo. É preciso contar mais histórias nossas, com temáticas e protagonistas femininas. É algo que, pouco a pouco, está mudando. Cada vez que uma mulher conta um filme, ela inspira outras. E isso é que importa, no final.
(Entrevista feita ao vivo em São Paulo em Outubro de 2016 e por telefone em Julho de 2017)
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