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Jules* Elting é artista trans não binarie e interpreta Mercedes em Carro Rei (2021). A personagem é uma mulher cisgênero que viaja pelo mundo fazendo intervenções de cunho crítico em emblemas de uma sociedade patriarcal. É Mercedes quem protagoniza a cena mais erótica do longa-metragem dirigido por Renata Pinheiro, aquela em que mulher e máquina copulam e chegam conjuntamente ao orgasmo. Jules* Elting (escrito assim mesmo, com asterisco) nasceu na Alemanha, se radicou no emblemático Teatro Oficina, de São Paulo, e vem construindo uma sólida carreira no cinema. Elu (este é o pronome pelo qual prefere ser chamade) se anunciou uma pessoa trans não binarie há pouco tempo e atualmente é militante das causas que dizem respeito a uma das fatias mais invizibilizadas da população. Não apenas na introdução, mas durante todo o transcorrer desta entrevista, mantivemos os pronomes e alusões linguísticas de modo a contemplar o que, segundo Jules* Elting, melhor lhe identificam. Então, confira a entrevista exclusiva com Jules* Elting, a primeira individual delu no Brasil, o que nos enche de orgulho e honra. Falamos de Carro Rei, representatividade e respeito. O resultado você confere a seguir.

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De cara, o que te chamou a atenção na Mercedes, a sua personagem?
De cara, diria que foi a coragem e a ousadia. A Mercedes é uma pessoa que não tem medo de enfrentar, de arriscar, de procurar o novo. Ao mesmo tempo, é uma pessoa curiosa, quase de um jeito infantil. Ela não tem preconceitos, é aberta a tudo. A Mercedes não julga. Achei essa mistura muito atraente.

E embora apareça relativamente pouco no filme, a Mercedes é uma personagem muito consistente. Partindo disso, gostaria de sabia como funciona o seu método de composição. Você idealiza outros aspectos que não aqueles que aparecem em cena?
Fico muito feliz que você tenha percebido dessa forma, pois realmente é um dos meus objetivos. Todo personagem tem uma vida e nos filmes acompanhamos apenas um momento dessa vida. É sempre meu objetivo criar uma existência caprichada. Embora seja mais trabalhoso, para mim isso é divertido também. Com isso ganho uma coisa muito abundante dos personagens, tenho o que utilizar em cena. Por exemplo, qual é a cor favorita da Mercedes? Isso nem aparece, mas me diverte e traz uma riqueza. Primeiramente, o filme tinha até mais cenas comigo. Coisas de cinema, claro. E esse roteiro era muito rico, havia muitas coisas acontecendo. Meu processo começa pelo aspecto físico, pois isso me inspira. Gosto de me afastar do meu corpo cotidiano. Mergulho tão intimamente nos personagens que, se tem algo de diferente, no corpo, no visual, que o distancia de mim, curto essa tensão. Precisamos encontrar um cabelo, por exemplo. Não sei se na versão final dá para perceber isto bem, mas a Mercedes dá aulas de pole dance em ONGs pelo mundo todo, parando sempre onde há uma taxa muito grande de violência contra as mulheres.

E aí deve ter tido uma preparação especial, não?
Claro. Pensei: para dar aula de pole dance, preciso ser muito forte. E tem isso de ela fazer essas interferências urbanas carimbando monumentos. A Mercedes precisa ter um corpo forte. Sou forte, mas magre (risos). Falei com a produção sobre a possibilidade de treinar diariamente numa academia. Eles arrumaram uma lugar maravilhoso, onde eu e o Matheus Nachtergaele treinávamos. Aliás, tenho vários vídeos divertidos dessa época (risos). Depois de uns dias, percebi que estava apenas perdendo peso, por conta da carga de exercícios e do calor. Entendi que era preciso mudar a alimentação. E assim fui criando essa vida. Mas, sabia desde o princípio que precisava ser algo bem sensorial. Não fico demais na psicologia da personagem. Por exemplo, não me interessa tanto o que aconteceu na infância dela. Penso muito em termos sensoriais e emotivos. Trouxe coisas da Alemanha para compor o figurino da incrível Joana Gatis, principalmente adesivos, coisas políticas. Eu tinha uma mochila cheia. E isso me enriquece, por mais que não apareça no filme. O cenário ajudou muito. Um trabalho de arte incrível. A Renata Pinheiro já tem esse cuidado e a Karen Araújo fez um trabalho excepcional. Nos ajudou muito atuar nesse ferro velho repleto de detalhes.

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Foto de Gal Oppido

A sua cena mais bonita é também a mais erótica do filme. Como foi a construção dessa cena tão física? Ela era muito marcada ou havia apenas uma intenção que ganhou corpo no processo?
Primeiro, rolou um trabalho pessoal. No sentido de entender o afeto com o carro. Nisso vinham lembranças infantis, como gostar do calor do carro ou a memória afetiva de alguém querido da família chegando num carro. Então, parti dessa sensualidade do calor e do cheiro do automóvel. Tivemos uma preparadora de elenco, a Raissa Gregori, que fez um trabalho com todo mundo, mas também alguns individualizados. Ela lida muito com o corpo. Ali fazíamos improvisações, se não me engano havia música. Eles trouxeram um carro para ensaiarmos em Caruaru. Não era o Carro Rei, pois ele é um bichinho muito frágil (risos). O Carro Rei é uma obra de arte, então não era possível ensaiar com ele. Em algum momento, Renata chegou para assistir aos ensaios. Lembro que obviamente todo esse processo é muito mais longo do que aparece no filme. Tudo era bem mais demorado. Filmamos essa cena no fim do processo, era meu último ou penúltimo dia de filmagem. Era uma noite quente de fevereiro, num lugar maravilhoso. Foi uma experiência incrível. Me lembro que eles pediram para acelerar. Não queriam cortar muito e a cena não poderia ter 10 minutos. Foi um sexo rápido (risos).

E tem o jogo com a própria câmera…
Sim, muitas coisas fui descobrindo com o passar dos takes e com esse jogo com a câmera. A câmera é mais um personagem no momento da filmagem. É mais uma máquina. As pessoas falam “é muito doido isso de contracenar com uma máquina”. No cinema a gente contracena o tempo todo com uma máquina que amamos.

E como foi a contracena com o Matheus Nachtergaele? Nas vezes em que o entrevistei, ele sempre foi gentil, afetuoso e generoso. No jogo de cena ele também é assim?
Nos conhecemos anteriormente, e de maneira breve, por conta do Teatro Oficina. O Matheus é muito fã do Oficina e conhece algumas pessoas de lá. Uma vez o encontrei por acaso em Tiradentes. Mas, nunca tínhamos passado tanto tempo juntes. O bom desse processo é que chegamos antes e tivemos um tempo de ensaio com todo mundo. E isso ajudou. Imagino que seja difícil encontrar um parceiro de cena apenas na hora da filmagem. O Matheus é exatamente do modo como você descreveu. Uma pessoa extremamente paciente e carinhosa. Fiquei admirade. Toda hora ele era parado por alguém em Caruaru. E sempre teve paciência para emitir uma palavra doce, para tirar fotos. É incrível com todo mundo do time. Antes do nosso primeiro dia e filmagem, me deu um frio na barriga (risos). Afinal de contas, contracenaria com alguém de larga experiência no cinema. Mas foi lindo. Nossos personagens têm algo parecido: são solitários, vivem num mundo próprio e são muito físicos. Então, havia um traço erótico entre eles.

Você se declarou recentemente trans não binarie. A sua presença no filme é, assim, também um ato político. Gostaria que você falasse um pouco sobre esse lugar e se você sente responsabilidade ao representar uma parcela da população que é marginalizada e/ou subrepresentada?
Muito legal a sua pergunta. No momento em que filmei, não estava publicamente com essa identidade. Nem havia entendido ainda isso por inteiro. Mas, esse filme é o primeiro trabalho que assino com meu novo nome. Para mim isso é absolutamente comovente. Poder lançar o filme aqui, nesse momento…super sinto essa responsabilidade que você mencionou. A maioria das pessoas trans não binaries luta contra a invisibilidade. Sempre fizemos parte do espectro de gênero da humanidade, mas nos últimos séculos fomos apagades. Acredito ser muito importante utilizar uma presença dessas para compartilhar vivências, criar pontes, explicar, de ajudar a abrir espaço na língua. Fomos erradicades do idioma. Primeiro, havia apenas a forma masculina. Nem mulheres tinham visibilidade. Então, foi preciso criar espaço na língua para as mulheres. Neste momento estamos ganhando termos para nos identificar. Isso é uma coisa bonita que não deve ser subestimada. Não se trata de detalhe. Palavras dão visibilidade, nomeiam e permitem identificação. E a linguagem é muito orientada pelo normativo. Sou uma pessoa bem rígida quanto a isso do idioma porque se trata de um primeiro passo: ter a possibilidade linguística de falar de si próprio. Só isso. E o segundo passo é poder contar histórias sobre a gente. A Mercedes é uma cis mulher, mas super imagino que se filmássemos atualmente poderia ser não binarie. Ela é bastante queer. Estou lutando por essa visibilidade.

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Foto de Gal Oppido

E como as representações são importantes, né?
Se tivesse contato, na minha adolescência, com histórias sobre pessoas como eu, teria entendido bem antes. Essa representatividade não é para cumprir cota, mas para as pessoas se enxergarem. O cinema, a publicidade, a TV, os livros dizem que contam a vida, mas na verdade retratam apenas uma parcela muito pequena da vida. E isso apaga toda a diversidade linda que existe na humanidade. Luto muito por isso: fazer mais personagens não binaries. E isso nem sempre precisa ser o assunto, porque é parte da nossa personalidade. É importante escrevermos trans e não binarie em letras minúsculas, como adjetivo. É apenas uma parte de quem sou. Depois que me declarei publicamente, tive sorte de fazer parte de um manifesto na Alemanha que se chama Act Out (cujo manifesto em português você acessa clicando aqui). Ao mesmo tempo, 185 intérpretes se declararam membros da comunidade LGBTQIA+. E isso foi uma coisa importante, pois não me senti sozinhe. Pensava que não teria mais trabalho depois de me declarar. Mas, não tinha escolha, era mais forte que eu. Em muitos países o Act Out repercutiu. Começamos um diálogo intenso com diretores de casting. Estou conversando com pessoas no Brasil e todos estão sendo abertos, querendo aprender  Além da representatividade como personagem, como corpo atuante, para mim é fundamental compartilhar que é possível continuar trabalhando depois de se declarar trans não binarie. Dá certo. É possível ser respeitade por cineastas e diretores de casting. Por aqui a discussão é recente, mas percebo uma curiosidade grande e sinto que posso acrescentar algo ao debate.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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