Como muitos já apontaram, Maria de Medeiros é uma cidadã do mundo. Nascida em Lisboa, é casada com um espanhol possui cidadania francesa. Fluente em mais de cinco línguas, atuou em diversos países, como Itália, Inglaterra, Canadá, Uruguai, México e Estados Unidos, além, é claro, de Portugal, Espanha e França. Ainda que muitos lembrem dela como a namorada de Bruce Willis no oscarizado Pulp Fiction: Tempo de Violência (1994), há um bom tempo vem mantendo também uma relação próxima com o Brasil. Na virada do século apareceu como a diva Sarah Bernhardt em O Xangô de Baker Street (2001), baseado no best seller escrito por Jô Soares, e desde então, sempre que pode, tem aparecido nas telas – telonas e telinhas, como na segunda temporada da minissérie Verdades Secretas (2021) – nacionais. Agora, no entanto, pode não estar em cena, mas é responsável pelo comando de Aos Nossos Filhos, drama que assina como diretora. Foi sobre esse mais recente trabalho, já em cartaz, que a cineasta conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!
Olá, Maria. Um prazer falar contigo. Teu longa anterior como realizadora havia sido o Repare Bem (2013), há quase dez anos. O trabalho de direção é uma atividade bissexta, ou algo ao qual você pretende se dedicar cada vez mais?
Comecei como diretora aos 19 anos, e como atriz um pouco antes, aos 15. A direção, portanto, veio a mim rapidamente, e sempre em paralelo. É certo que tenho trabalho como atriz, sem falar que há algo em comum com todo realizador: projetos que vão ficando pelo caminho. Nem havia pensado nisso, mas, de fato, há um intervalo de quase dez anos entre Repare Bem e Aos Nossos Filhos. Mas não fiquei parada, trabalhei como atriz, além de um outro longa-metragem. Mas esse era uma proposta diferente, algo que me foi trazido pelo canal Arte, de televisão, e que se chama Entre Dois Desconhecidos (2015). Participaram vários artistas, pensadores, escritores, realizando uma correspondência filmada pelo celular. A mim a ideia era trabalhar com o filósofo francês Stéphane Zagdanski, e foi incrível, adoramos esse exercício. Cada um fez dez cartas, e decidimos que não iríamos nos conhecer antes de acabarmos com essa troca de mensagens. Posso dizer, portanto, que fiz mais esse longa nesse intervalo, ainda que tenha sido um projeto bastante especial.
Como começou o teu envolvimento com o Aos Nossos Filhos?
Estava na Europa quando recebi a peça de teatro da Laura Castro. Quando li, não entendi se o convite era para fazer a mãe ou a filha. Pois, pelo que percebi, não tinha idade para fazer nem uma, nem a outra. Apesar disso, gostei do que havia lido, a achei interessante. Foi um momento de descoberta dessas questões familiares, do que significa esse desejo de ter uma criança por parte de um casal gay. São processos complicados, além da relação mãe e filha. Aliás, o passado dessa mãe tinha a ver com o Repare Bem, que também é uma história entre mãe e filha – só que verdadeira, afinal, trata-se de um documentário. De alguma forma, esse filme anterior havia me preparado para esse papel, para essa personagem. Por tudo isso, aceitei, e vim para o Brasil. A peça ficou em cartaz por três anos, viajou por diversas cidades, e rapidamente propus à Laura fazermos o filme.
Na peça você fez qual das duas personagens? Ou apenas a dirigiu?
Não, fazia a mãe, papel que agora, no filme, está com a Marieta Severo. Isso é interessante: a Laura, quando escreveu a peça, pensou nessa personagem para a Marieta. Só que ela não pode aceitar, por outros compromissos assumidos, colisão de datas e tal. Foi assim, em substituição à Marieta Severo, que a peça chegou até mim. No teatro a imaginação permite esse exercício, então foi possível trabalhar a voz, a atitude, essa mudança de geração. É algo apaixonante de se fazer no palco. Mas, quando pensamos no filme, imediatamente voltamos à ideia original: tinha que ser a Marieta. O papel foi escrito com ela em mente, então tinha que voltar para ela.
Em outras ocasiões, você atuou e dirigiu ao mesmo tempo. Em Aos Nossos Filhos, no entanto, está apenas dirigindo. É mais confortável, digamos, ficar em apenas uma função?
Com certeza. Estar na frente e atrás das câmeras, ao mesmo tempo, complica um pouco. No meu primeiro longa, A Morte do Príncipe (1991), havia tido essa experiência nos dois lados. Isso foi possível porque, naquela época, era uma dessas atrizes que não tinha interesse em me ver em cena. Uma vez filmado, era isso e vamos em frente. Foi essa a ocasião que me obrigou a olhar para mim como uma diretora olha para uma atriz. Foi algo bom, que me ensinou muito. Foi uma oportunidade de conhecer melhor o meu principal instrumento, que sou eu mesma. Recomendo que todo ator faça isso: se veja.
Há uma reclamação constante sobre a dificuldade em se encontrar bons papéis para mulheres à medida em que vão envelhecendo, como se só houvesse interesse pelas mais jovens. O papel da Vera, personagem da Marieta Severo, vai na contramão dessa tendência. Foi difícil abrir mão dessa personagem?
De maneira alguma. Pelo contrário, era algo evidente para nós. Concordo contigo, realmente, com o passar dos anos, os bons papeis femininos se tornam escassos. Mas, nesse caso, não era algo que entrou na balança. Até porque realmente queria filmar o Rio de Janeiro. Mas não essa visão de turista e, sim, tal qual o recebi. O Rio como o sinto na minha relação com os amigos, pessoas de classe média. É um lugar que praticamente nunca vi no cinema. Não é o Rio da testosterona, dos esportes radicais, ou das armas, da violência. Não tinha interesse em mostrar bundas na praia. Queria essas pessoas que vivem em uma cidade que, por si, é contraditória. Uma coisa que sempre achei interessante é a geografia do Rio, esplendorosa, magnífica, mas ao mesmo tempo te impõe um monte de coisas. Percebi que tudo é vertical. Assim como a sociedade: é desnivelada. Isso nos obriga a passar por situações que, para mim, eram quase Jacques Tati. Quis brincar com a percepção que tinha desse lugar. É a única cidade do mundo que conheço que na zona sul você vê, ao mesmo tempo, passar executivos engravatados ao lado de caras de sunga tomando cerveja. Essas imagens me impactaram, queria resgatar. Sem falar que, na prática, também seria impensável, pois não tenho a idade da personagem.
A relação com a direção, portanto, depende de cada projeto?
Acho que uma coisa nutre a outra. Quando acabo um filme como diretora, gosto da ideia de ser só intérprete num próximo trabalho. Mesmo a minha relação com os atores faz com que entenda melhor minha função enquanto intérprete a serviço de outros diretores. Da mesma forma, logo após desempenhar um papel grande como atriz, tenho vontade de passar para o outro lado. Esse vai e vem é algo que gosto muito.
Aos Nossos Filhos fala da ditadura militar, algo não só brasileiro, mas que afetou a América latina como um todo. Como foi se apropriar dessa temática?
Meu primeiro filme de ficção, o Capitães de Abril (2000), foi um investimento de treze anos da minha vida, de muita pesquisa para contar essa história sobre a saída de Portugal de uma longa ditadura. Afinal, Portugal teve a mais longa ditadura fascista da Europa, que durou 48 anos, e conseguiu sair dela de uma forma exemplar, quase única em todo mundo, com a Revolução dos Cravos, um golpe de estado militar, mas em favor da democracia. Ainda assim, marcou todos os portugueses, mesmo os mais jovens, como eu. Portugal e Brasil há muito tempo vem dialogando em relação às suas experiências com a ditadura e, principalmente, em como nos livramos desses regimes tão nefastos. Por tudo isso, não me sinto distante. Pelo contrário, próxima de tudo que acontece no Brasil. O Repare Bem foi uma aventura extraordinária e, de alguma forma, já dialogava com os Capitães de Abril. E o Aos Nossos Filhos dialoga com os dois. São todos familiares uns aos outros.
Fale um pouco da tua relação com a canção Aos Nossos Filhos, de Ivan Lins.
Tudo partiu dessa canção. Quando a Laura sentou para escrever a peça, que resultou em um texto próximo à própria vivência dela, no qual conta como foi o início dessa aventura dela para ter seus filhos. Não sei se você sabe, mas ela teve três filhos com outra mulher. Aliás, com a Marta Nóbrega, que faz o papel da Vanessa, a esposa dela em cena. As duas não são mais casadas, mas aceitaram reviver essa relação no filme. Então, voltando, a Laura conta que estava ouvindo a canção do Ivan Lins, aquela carta dos pais envolvidos com a resistência contra a ditadura aqui no Brasil, pedindo perdão aos filhos por serem pais ausentes, pais perseguidos, presos, torturados, exilados etc. Ela escreveu a peça com isso em mente. Depois, quando descobriu que a Marieta não poderia fazer no teatro e se viu tendo que procurar uma atriz para substitui-la, um familiar dela a alcançou um disco meu, no qual cantava Aos Nossos Filhos. Uma vez mais, essa canção fez um tilt na cabeça dela e foi por causa dela que nos unimos.
O Claudio Lins, portanto, está presente como uma homenagem ao pai dele, o Ivan Lins?
O papel do Claudio é muito importante. É um personagem pensado especificamente para o cinema. Na peça, havia apenas um vago indício de uma entrevista da protagonista que dava para o filho de uma amiga. Quando perguntei para a Laura quem era essa pessoa que a entrevistava, a resposta foi: “não sei”. Foi quando tive a ideia: “vamos fazer essa pessoa existir?”. Para mim era importante falar da questão do desaparecimento. As vítimas da ditadura, muitas vezes se referem como o pior dos sofrimentos talvez seja esse, das pessoas que desaparecem e das quais não ficam sabendo o que lhes aconteceu. Realmente queria um ator que tivesse essa qualidade de escuta, algo que é raro, saber ouvir. A Laura é amiga do Claudio Lins, e quando fiquei sabendo que ele era filho do Ivan Lins, tudo passou a fazer sentido. Tanto que, quando o conheci, ficou evidente que teria que ser ele.
A partir do contexto sócio-político do Brasil de hoje, tão dividido, o que Aos Nossos Filhos tem a dizer a esse espectador?
É um filme aberto ao diálogo. Algo, aliás, que já existia na peça. E foi o que fez com que me apaixonasse pelo texto. A gente sentia que os espectadores ouviam e entendiam que as duas personagens eram inteligentes, ainda que bastante contraditórias. E é assim que as pessoas são. A gente não é um bloco só. Se ouvia uma delas, e pensava: “verdade, tens razão”. Mas, quando a outra começava a falar o oposto, vinha um: “puxa, isso também faz sentido”. Queríamos muito manter essa percepção no filme. Para sair da situação de surdez, a cegueira do Saramago, mas também uma surdez na qual todos gritam muito forte e ninguém escuta nada. O que Aos Nossos Filhos propõe é que nada é simples, tudo é complexo, e é necessário ouvir e pensar a partir dessas complexidades. O fanatismo é simplista, e temos que nos livrar disso. É através do pensamento, da reflexão, que talvez a gente consiga se livrar desse cenário.
(Entrevista feita por zoom em julho de 2022)
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