Indicada ao Prêmio Guarani de Cinema Brasileiro em 2019, Susanna Lira (Torre das Donzelas, 2018) atua desde os anos 2000 como diretora. Nos últimos tempos, ainda mais. Basta clicar no perfil da realizadora aqui no site para conferir a quantidade de projetos em que esteve/está envolvida. Nesse vai e vem de produções, transitando entre direções e argumentos, a cineasta esteve no 29º Festival de Cinema de Vitória para apresentar o documentário A Mãe de Todas as Lutas (2022). O enredo segue duas mulheres à frente da luta por terra no Brasil: Shirley Krenak e Maria Zelzuita. A primeira carrega as tradições das Guerreiras Krenak, e a segunda é integrante do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e sobrevivente do Massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará. Com depoimentos tocantes e realistas, o filme aborda preservação da natureza, causa indígena e luta por terra, questões imediatas da sociedade brasileira. Sobre isso, e mais, Susanna conversou com o Papo de Cinema. Confira este bate-papo exclusivo abaixo.
Você classificou A Mãe de Todas as Lutas como “um filme que não é fácil”. Por quê?
Porque confrontar o Brasil e a nossa história não é fácil. Rever a trajetória do país e como ela se repete é muito doloroso. É incômodo para as pessoas quando assistem e também foi pra mim quando fiz. Quando você pega um arquivo como o do Massacre dos Carajás (assassinato de dezenove sem-terra que ocorreu em 1996 em Eldorado do Carajás, decorrente da ação da polícia do Estado do Pará) e perceber que nos últimos anos isso se agravou ainda mais, é desconfortável. Mas acho que um dos papéis da arte é provocar. É difícil, mas quem falou que arte precisa ser fácil? Considero esse um dos projetos mais difíceis que trabalhei pelo sentido do espelho que ele se torna, no qual podemos observar a nossa realidade e perceber que historicamente a gente tem passado por muitas lutas sangrentas por terra no Brasil.
O título do filme remete à maternidade. Como surgiu a ideia e porquê esse nome?
Porque não há luta maior que não seja pela terra. Essa é a matriz de todos os povos colonizadores e colonizados. Quando um colonizador chega num lugar, ocupa e deixa alguém desocupado. A terra é basicamente o que você tem para viver, então se não tem terra, não tem vida, não tem de onde partir ou se sustentar. Nisso encaixo os povos originários e os camponeses. Considero essa a mãe de todas as causas, pois outras surgem a partir daí. Tudo começa com sua casa.
O enredo possui uma linguagem incomum. Une duas trajetórias que não necessariamente andam juntas. Como foi esse processo de desenvolver dois filmes em um só?
Fui pesquisar quais eram as pessoas mais atingidas pelo último governo presidencial brasileiro. Segundo os dados que coletei, os indígenas ainda encabeçam a lista de mais perseguidos. E o MST vem logo em seguida. Então resolvi cruzar essas histórias porque se ajudam. Peguei a da Shirley e da Maria porque acho que se complementam. A Shirley comenta no filme, inclusive, “a gente só conseguiu replantar isso aqui porque o MST nos deu condições“. É um link subjetivo, mas se agregam. Acompanhei manifestações de ambos movimentos e eles se saúdam. Então não foi algo que criei, foi uma possibilidade que a realidade me deu e achei interessante.
De que forma você acha que esse filme se encaixa na conjuntura social do momento no Brasil?
Comecei a fazer esse filme porque acompanhava a Pastoral da Terra (órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, vinculado à Comissão Episcopal para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz, criado em 1975) e eles tem uma lista de pessoas, vinculadas aos movimentos por terra, marcadas para morrer. E cada vez mais estavam surgindo nomes femininos, porque os homens já tinham morrido. Elas estão ocupando os lugares dos maridos, dos pais, dos irmãos… então começo neste contexto, no qual as mulheres se tornam líderes por absoluta falta de escolha. Nesses últimos quatro anos isso tudo se agravou, como pode ser visto no filme. Esse último governo atacou muito as mulheres e sufocou demais o MST e os indígenas. Haviam demarcações de terra dos povos originários que foram devolvidos para latifundiários e famílias que estavam assentadas e foram retiradas de seus lugares. Esse retrocesso e o agravamento dessa crise merecia um registro. O documentarista é um fotógrafo do seu tempo. Então acho que esse longa é uma fotografia de uma gestão nacional que desrespeitou lutas justas.
(Entrevista feita durante o 29º Festival de Cinema de Vitória, em setembro de 2022. O Papo de Cinema esteve na capital capixaba, a convite da organização do evento)
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