Joel Pizzini já havia dirigido um programa sobre o marechal Rondon para a TV Centro América, de Campo Grande, quando recebeu o convite da produtora paulista Patrícia Civelli para realizar um documentário sobre o militar e indigenista brasileiro. O aclamado cineasta, premiado nos festivais de Brasília e Gramado, aceitou a proposta, desde que pudesse avançar no projeto seu interesse pela exploração de novas possibilidades e ferramentas da linguagem documental. E o resultado disso se tornou seu quinto longa, Rio da Dúvida (2018). Exibido na noite de sexta na programação da 14ª CineOP, o filme mescla ficção e documentário, com os atores Rodolfo Vaz (do Grupo Galpão) e Xando Graça como respectivamente, Rondon e o ex-presidente dos EUA, Theodore Roosevelt, recriando a histórica Expedição Científica Roosevelt-Rondon, que atravessou o Pantanal e a Floresta Amazônica em 1913. Além dessa mistura, o documentário é uma miscelânea de registros e pontos de vista, do jornalístico ao poético, do intimista ao épico-operístico, num resultado de tom nem sempre muito bem afinado. No papo abaixo, Pizzini fala sobre essas escolhas, a relação do projeto com a minissérie O Hóspede Americano (The American Guest, 2019), da HBO, que vai tratar do mesmo tema, e faz algumas reflexões sobre o que lhe interessa e instiga no cinema documental.

 

Como o convite da Patrícia chegou até você?
O pai dela, Mário Civelli, era um cara da Multifilmes, da indústria cinematográfica paulista. Ele conheceu o Rondon na selva e tinha uma autorização por escrito dele para fazer um filme sobre sua vida. Num determinado momento, decidiu-se que ia fazer dois projetos: uma ficção, que se chamaria O Hóspede Americano e seria dirigida pelo Roberto Farias, e um documentário, para o qual a Patrícia me convidou.

Joel Pizzini na CineOP 2019 – Foto: Leo Lara/Universo Produção

Essa ficção se tornou uma minissérie dirigida pelo Bruno Barreto para a HBO, certo?
Pois é, não sei que acordo foi feito. Se só compraram o título ou negociaram o roteiro. Sei que foi feito um acordo, e o Roberto Farias teria cedido o título para o Bruno realizar essa minissérie que é narrada, até onde sei, do ponto de vista do filho do (Theodore) Roosevelt. Já está filmada, o Chico Diaz é o Rondon. O filme de ficção dos Civelli acabou não acontecendo por questões econômicas, a reconstituição de época seria muito cara.

 

Mas você acabou mesclando ficção e documentário no seu próprio filme.
Aceitei desde que pudesse trabalhar com recursos de ficção também – para não fazer um documentário só de entrevistas. Queria dar um passo além, não imitar uma abordagem que já tinha feito, e aceitaram. Queria traduzir a grandiosidade dessa jornada do Rondon por meio de uma experiência estética, operística, da exasperação, do drama. Porque o Rondon é um cara que encarnou um sentimento de uma grande utopia, de harmonia entre as classes, desenvolvimento sustentável. Ele enviou o major Reis para Paris em busca de equipamentos de cinema, que havia sido recém-inventado, e, em 1912, criou um Serviço de Cinematografia e Fotografia dentro do Exército. Encomendou um negativo especial para filmar na selva, chamado Lumière Tropical, porque o que estavam usando, disponível no Rio de Janeiro da época, não traduzia a luminosidade da floresta. Ficava tudo muito escuro. Era um visionário. E se eu fosse contar tudo isso só com entrevistas, não teria a mesma força de criar uma mise-en-scène, incluir os índios no tempo dessa narração. Buscar uma fabulação desse mito. 0s atores no filme são provocadores para que a memória dos índios venha à tona, como o Pereio no Iracema: Uma Transa Amazônica (1975)E os índios, ao se depararem com os atores, encaravam o Rondon-ator como um mito, como se ele tivesse voltado à vida, tocando nessa cultura indígena de respeito aos espíritos e nesse choque de mentalidades que a história retrata.

 

E como você chegou até as imagens de arquivo inéditas apresentadas no longa?
Comecei um processo de prospecção e pesquisa maior do que o que tinha feito para o programa de TV. Tive uma consultoria do Hernani Heffner, do Mauro Domingues e do Toni Venâncio. E tivemos um acesso, até então, indiscriminado no Museu Nacional. Descobrimos imagens do Roquette Pinto de 1912. Foi feita uma pesquisa em Nova York, na Biblioteca de Washington, para trazer imagens relativas ao Roosevelt. E também alguns acervos particulares. Minha proposta não era fazer um filme sobre o Rio da Dúvida, mas através do rio. Fazer dele um mote para evocar a história, o pensamento e a política indigenista do Rondon com uma linguagem operística. Trazer os temas (musicais) do Villa-Lobos para mostrar essa visão de mundo épica dele.

Cena do filme “Rio da Dúvida”

Vocês disseram na apresentação que foi uma produção difícil, com muitas filmagens em locações inóspitas. Para você, qual foi a maior dificuldade na realização do longa?
Uma dificuldade real, que a gente achava que ia ser simples, foi encontrar uma canoa feita de tronco na Amazônia. Não existia mais, uma loucura. É uma tradição que se abandonou. A canoa do filme é uma que os índios Pareci desenterraram. Porque a forma como preservam as canoas é enterrando. Ela estava enterrada desde os anos 1990. E isso é muito metafórico dessa memória que está soterrada e vem à tona no filme.

 

E como foi a decisão de fazer um longa exaltando uma figura militar no atual momento do país?
O Rondon é um militar especial. Como disse Carlos Drummond de Andrade, é um “militar suave”. E o índio também é militar. A palavra militante vem de onde? Indica uma disciplina. E os índios têm muita disciplina. O militar é uma figura meio demonizada, ligada a um caráter autoritário, especialmente porque passamos por uma ditadura militar aqui. Mas alguns deles dão aulas nas aldeias. O problema é uma visão militarista que tem um certo pânico de que os índios criem uma nação independente no Brasil. Muitos militares não aceitam a ideia de nação indígena porque nação é a pátria brasileira. Mas o que me interessava era resgatar o lado humanista do Rondon, a ascendência indígena dele, a luta dele, a autocrítica no final da vida ao fracasso do projeto positivista e também os mitos criados pelos índios sobre ele, como eles o veem.

 

Saindo um pouco do filme agora para falar sobre sua carreira: você se formou em jornalismo, quando e por que decidiu se tornar documentarista?
Foi um desdobramento natural da atividade do jornalista, da investigação, do pesquisador. Isso é algo que me acompanha em todos os meus filmes. E ao mesmo tempo, praticava secretamente meus poemas. Sempre fui interessado em poesia. Eu quis mixar essas duas vertentes: do poeta e do pesquisador. E me identifico com uma ideia de arqueologia – o Drummond fala “arqueólogo de sonhos”, do campo onírico, mítico, poético. Me interessa ressignificar imagens perdidas no tempo, interditadas. Esse trabalho me fascina. Procuro no arquivo não só a concretude do significado ou da imagem aparente, mas a materialidade e a sensualidade que pode haver nela. Não só me impregnando do sentido histórico do arquivo, mas o dramático, matérico. E isso vem da poesia.

 

Quais são suas principais referências e influências nessa abordagem?
Tem o Johann van der Keuken, um diretor holandês que tem trabalhos muitos subjetivos ligados à memória. E também o Peter Tscherkassky, austríaco. O Bill Morrison, americano que foi convidado aqui da CineOP no ano passado. Ele trabalha com materiais em decomposição, sobras e extrai uma dramaticidade de coisas que foram decretadas para o lixo da história. É impressionante. A própria Agnès Varda, que tinha uma relação muito viva com as próprias memórias. Era uma catadora de suas próprias memórias. Nos cursos que dou, sempre coloco em dúvida a palavra documentário no sentido que ela normalmente é usada de mumificação da realidade, registro, tratamento impessoal. Prefiro filme-ensaio: não apenas reproduzir imagens de forma reverente.

Joel Pizzini na CineOP 2019 – Foto: Leo Lara/Universo Produção

E de que recurso utilizado na prática documental no cinema você menos gosta?
A supervalorização do conteúdo em detrimento da forma. Acho que deve haver um equilíbrio entre os dois. No documentário que vem da tradição jornalística, a forma é vista de maneira secundária. A imagem tem um caráter ilustrativo. Ela não é vista com sua potência seminal. E o mesmo vale para quando existe uma hierarquização entre imagem e som, quando a imagem é mais importante, ou o som é uma narração de Deus interpretando tudo para o espectador. A pesquisa histórica me fascina tanto quanto a pesquisa de linguagem. Encontrar uma forma narrativa que dê conta, que traduza e investigue, decante uma determinada experiência real e consiga ter um olhar arejado e prospectivo – e não retrospectivo.

 

O que você acha do esforço atual de vários documentaristas brasileiros de tentar registrar e compreender esse momento caótico por que o país está passando?
É importante produzir memória e reflexão. É algo não muito contemplado porque o documentário tem uma tendência passadista, nostálgica, de não eleger a memória recente como passível de ser examinada. Porque ainda não foi consagrada e não passou pelo crivo da história. É mais cômodo trabalhar com coisas já icônicas. E canônicas.

 

Como você enxerga as possibilidades de acesso e difusão que a revolução do streaming tem proporcionado para o documentário?
Acho que nada vai substituir o rito presencial, de se deslocar de casa, intercambiar, a forma de ver e contemplar do cinema. Esse ritual é insubstituível. Mas existem outros que permitem acessos mais facilitados. Não podemos ter uma visão purista. Acho que o cinema dito “de arte” vai ser meio como música de câmara. Não vai ser um fenômeno de massa, mas vai manter seu caráter filosófico, reflexivo, ritualístico. O problema é o caráter predatório de uma coisa querer suplantar a outra.

Joel Pizzini ministrando o workshop “A Invenção do Documentário e o Documentário de Mentira”, na CineOP 2019 – Foto: Leo Lara/Universo Produção

E o que você viu no cinema recentemente e recomenda?
Acho que foi o último do Godard, Imagem e Palavra (2018). Não é uma obra que se realiza como espetáculo, perfeita. Mas é um filme que te tira do filme para pensar em outras coisas. Como ele trabalha basicamente com arquivo, causa uma provocação intelectual. Desses últimos dele, foi o que me tocou mais, me perturbou, me fez pensar.

A 14ª CineOP segue até a próxima segunda, dia 10. A programação completa pode ser conferida no www.cineop.com.br. O crítico viajou a convite do evento.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
é jornalista e crítico de cinema, membro da ABRACCINE – Associação Brasileira de Críticos de Cinema.
avatar

Últimos artigos deDaniel Oliveira (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *