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Sinopse

A história do Festival de Águas Claras, o lendário encontro ao ar livre de música brasileira que, fazendo sucesso entre a década de 1970 e de 1980, ficou conhecido por muitos como o Woodstock do Brasil. Artistas e fundadores do evento, além de imagens de arquivo de shows históricos e bastidores, relembram a trajetória que tornou o evento um símbolo da contracultura no país.

Crítica

O Barato de Iacanga apresenta a história pouco conhecida do que foi provavelmente um dos maiores eventos da música brasileira, contando com imagens raras de apresentações antológicas. Mas não é só esse conteúdo que faz dele um dos filmes nacionais mais deliciosos de 2019. O primeiro longa do diretor Thiago Mattar se alicerça sobre três pontos fundamentais para o Brasil atual: cultura, memória – grande parte do público da 14ª CineOP, na qual ele foi o filme de encerramento, nunca havia ouvido falar do festival retratado – e resistência. E poucas premissas resumem melhor a ideia de resistência do que um grupo de hippies que decidiu fazer um Woodstock brasileiro no interior de São Paulo, uma das regiões mais conservadoras do país, na década de 1970. Essa é a história inacreditável do Festival de Águas Claras, cujas três edições são recapituladas pelo documentário a partir de divertidos depoimentos e um riquíssimo acervo de imagens de arquivo.

Exibido no É Tudo Verdade, o filmevai desde a semente inicial do idealizador Leivinha que, junto com os amigos, organiza um festival de rock quase improvisado com hippies andando nus pela fazenda da família na cidade de Iacanga, em 1975. Segue pela luta contra a ditadura para a realização da segunda edição em 1981, com shows de Luiz Gonzaga, Gilberto Gil, Hermeto Pascoal e Moraes Moreira atraindo um público de todo o país. E chega ao auge em 1983, com a antológica participação de João Gilberto. E O Barato de Iacanga funciona tão bem porque conta essa história quase esquecida com uma competência narrativa que associa leveza a camadas de comentário social e político. Uma das principais responsáveis por isso é a montagem de Guilherme Algon, que estrutura os três atos do filme em torno de cada uma das edições, com a materialidade das imagens de arquivo – o granulado do Super-8 de 1975, e o borrão esmaecido do VHS e Betacam da TV dos anos 80 –demarcando bem cada um desses períodos.

Além disso, ele e Mattar mantêm um equilíbrio entre os vários depoimentos (explorando bem como Leivinha e seus amigos são ótimos contadores de história) e os registros musicais – deixando, por exemplo, que o público confira a incrível performance de João Gilberto cantando Wave para um público de quase 100 mil pessoas. Mas um dos melhores exemplos da capacidade de síntese narrativa do longa é quando resume a controvérsia em torno do prejuízo da edição de 1981 (mais de 70 mil presentes, e apenas 12 mil ingressos vendidos) em poucos segundos, na entrevista de duas amigas donas de um restaurante que discordam sobre a memória do evento ter dado ou não o cano em seus credores.

Esses depoimentos dos moradores de Iacanga, e esse olhar para como o entorno abraçou o evento, é o que dá um forte caráter humano e uma interessante camada sociopolítica ao documentário. Para além de apresentar uma perspectiva divertida e inusitada sobre a cultura hippie dos anos 1970, O Barato de Iacanga retrata, essencialmente, uma convivência possível, pacífica e proveitosa entre uma comunidade aparentemente conservadora e um grupo de cabeludos, peladões, adeptos de substâncias ilícitas e do amor livre.

O longa faz questão de reiterar que nunca houve nenhuma confusão ou violência – algo digno de nota, especialmente quando se leva em conta a diversidade musical dos artistas que se apresentaram. E não se furta de uma escolha arriscada, ao incluir os depoimentos de um policial do DOPS que se infiltrou na primeira edição do festival como fotógrafo e faz vários comentários pró-ditadura, chegando inclusive a creditar a repressão militar pelo sucesso do evento. São momentos desconfortáveis, que quebram um pouco a leveza da produção, mas necessários porque essas pessoas existem (e estão no poder) – e Mattar não as ridiculariza ou trata como algo menor, mas deixa que falem por si só. É esse retrato de uma cultura que une e que dá certo, sem perder de vista o contexto sombrio que a cerca, que faz de seu documentário um registro histórico único e uma deliciosa fatia de esperança para os dias de hoje.

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é jornalista e crítico de cinema, membro da ABRACCINE – Associação Brasileira de Críticos de Cinema.
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