Há poucos dias me deparei com o curta Mourir auprès de toi (Morrer junto a ti). Dirigido em 2011 pelo incansavelmente original Spike Jonze (de Quero ser John Malkovich, 1999; Adaptação, 2002; Onde vivem os monstros, 2009; etc) para a arte da designer francesa Olympia Le-Tan, o filme é uma animação stop motion. Isto é, uma animação em que os movimentos dos personagens são registrados um a um e “colado” em sequência, a fim de produzir a sensação de movimento e continuidade. Ainda que sofisticada, a técnica remete aos dois principais fundamentos do cinema – iludir e contar.

A história se passa em uma livraria da capital francesa.  Para um bibliófilo, a relação que Paris mantém com os livros é tão íntima quanto a ideia que um casal de namorados mantém com a paixão. Por isso, depois de cumprir as funções diante dos leitores durante o dia, após dissimular a importância do texto, é o  momento em que as ilustrações tomam vida no mitológico espaço da ficção. Os personagens, tão diferentes entre si, interagem, se afeiçoam e criam novas narrativas, não menos vigorosas quanto as de seus autores.

O tom lúgubre e provocativo do curta nos remete menos aos trabalhos de Jonze do que à filmografia de Tim Burton, especialmente à Noiva Cadáver (2005), filme de animação realizado com a mesma técnica. Da mesma forma, algo que parece ainda mais encoberto é a referência ao mito de Orfeu.

A Noiva Cadáver, de Tim Burton

Orfeu se apaixona pela bela Eurídice. Aquilo que agrada aos olhos de um, agrada aos de outros. Assim, ao tentar fugir de um pretendente, a jovem acaba picada por uma serpente e morre. A injustiça é a dor incontornável instalada no peito daquele que ama. Para remediar a situação, Orfeu consegue permissão para descer ao Hades e resgatar Eurídice. Cérbero, guardião das portas do inferno, apresenta apenas uma condição para que o casal chegue com vida à superfície: a de que não se olhassem antes de ver o sol. Obstinado, Orfeu aceita o desafio e supera uma a uma as depravações do mundo dos mortos. No último momento, porém, quando prestes a alcançar o exterior, ele procura pela jovem, receoso de tê-la perdido na trajetória. Os deuses gregos são carrascos: recear perder já é perder. Assim, sem falsa misericórdia, Eurídice transforma-se definitivamente em espectro, em perda, em lembrança – para as lamúrias do amado.

Proveniente da mitologia grega, a história de Orfeu e Eurídice ganhou destaque a partir da encenação da ópera homônima do compositor alemão Christoph W. Gluck, em 1762. O movimento Romântico encontrou na tragédia do homem que segue a mulher da sua vida mesmo além da vida o tema perfeito para o ideal da “paixão romântica”: o amor sublime, incorruptível e eterno. Nada toca mais os idealistas do que a ideia de lutar contra o destino e suportar a injustiça. O amor é um sentimento tão elevado que, ao ser impossível de ser alcançado pela falibilidade humana, encontra no sofrimento uma consequência obrigatória. O paradoxo é cruel; o destino, impiedoso.

Orfeu, de Cacá Diegues

Mourir auprès de toi guarda o resquício dessa noção de que o sentimento nascido na vida pode se estender além dela. A construção do submundo dos livros é, pois, uma representação perfeita disso. A fim de dar ares modernos à história e desviar do sentimentalismo, o diretor aposta na zombaria como elemento de descentrar a trama. As ações dos personagens não são levadas a sério. E talvez assim seja, melhor para os apaixonados e para o amor.

 http://www.youtube.com/watch?v=z6RgXnhBUxU

*As cenas a partir dos 3:51 são sensacionais e explicam o motivo pelo qual dizem ser cego o amor.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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