Há algumas semanas, Porto Alegre foi presenteada com uma mostra de Béla Tarr. Em película. Além do luxo que é ver filmes em formato original, hoje em dia, com grãos e rasuras próprias do material cinematográfico, era a oportunidade de assistir aos cortes definitivos, escolhidos pelo diretor.

Dentre os motivos do meu entusiasmo com a programação estava a possibilidade de assistir ao Sátántangó (1994) no cinema. Sabia que era uma oportunidade única. Poderia vê-lo em algum canal fechado ou comprá-lo em muitas versões e qualidades diferentes. No cinema, porém, e da forma como fora concebido, senti se tratar de uma chance rara. Ao comentar com amigos sobre o filme, fiz questão de ressaltar a duração. Os 450 minutos são magnânimos, retumbantes – impressionantes. Após a expressão de espanto e incredulidade, todos, mais ou menos cinéfilos, contestavam. É muito longo, diziam alguns. É desnecessário, diziam outros.

É curioso argumentar sobre a necessidade ou utilidade da produção artística. Qual a utilidade de um Monet? E a serventia de um Tchaikovsky? O cinema – assim com a literatura, a música, etc. – não é necessário. Se parassem de filmar a partir de agora, recolhessem todos os filmes e os cinemas fechassem, muitos seriam os desempregados, mas duvido que alguém entrasse em depressão. Quem entrasse deveria reavaliar o seu entendimento da vida.

Independente de concordar que o critério da necessidade não é um argumento válido, e que, sim, 450 minutos é muito tempo (a sessão teria duas pausas) para se ficar em uma sala de cinema, o meu ponto a favor de Sátántangó era outro.

Filmes não nascem longos, assim como Guerra e Paz não nasce volumoso. A extensão de uma obra não é um projeto, mas uma consequência. Creio que as pessoas que deixam de assistir a um filme pela duração esperam que a arte lhes transmita uma mensagem, uma moral. As parábolas são assim. Quando queremos dar um recado, precisamos ser simples e diretos, pois quanto mais codificamos, mais arriscamos deformar o resultado final.

O que a arte complexa, no entanto, como a de Béla Tarr, se propõe é entregar experiência. O espectador que se dispõe a passar mais de sete horas junto às planícies vastas e vazias do filme ou o leitor que se debruça com intensidade sobre as páginas de Crime e Castigo não encontrará um recado sobre como conduzir os relacionamentos ou cuidar dos filhos. O significado presente existe, mas está obscuro. Isto é o que costumam chamar de filme “difícil”. Filme difícil dá trabalho, porque a experiência dá trabalho, caso contrário jamais significará algo além do próprio acontecido – ou seja, no caso de Sátántangó, será apenas um filme de mais de sete horas. 

Diferentemente da parábola ou da mensagem, que prometem recados precisos e claros, a experiência não se compromete, não carrega consigo promessas. Tal qual o gólgota, não se pode passar incólume por uma experiência, mas nada garante a redenção; nada garante que compreenderemos o significado da ressurreição. Gosto de pensar que Santo Anselmo, ao proferir credo ut intelligam (“crê para entender”), apresentava não apenas uma forma de conciliar fé e razão, mas de compreender alternativamente o que nos sucede. Crer não é nada mais do que aceitar. Aceitar, estar disponível e se submeter à experiência é mais importante do que extrair seu significado. Como as provações, um filme longo pode ter muito a dizer – ainda que não seja proferida uma única palavra. 

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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