Crítica

Nos anos de 1970, Hollywood esboçou uma espécie de revival do film noir, com uma série de longas que recolocaram em voga uma das figuras mais emblemáticas do imaginário cinematográfico norte-americano: o detetive particular. Entre outros cineastas, como Roman Polanski com Chinatown (1974), Robert Altman se aventurou nessa onda revivalista, escolhendo a adaptação de um romance de Raymond Chandler protagonizado pelo detetive Philip Marlowe, a quintessência deste tipo de personagem. Na trama de O Perigoso Adeus, Marlowe (Elliott Gould) é contratado pela bela milionária Eileen Wade (Nina van Pallandt) para descobrir o paradeiro de seu marido, o famoso escritor Roger Wade (Sterling Hayden), que desapareceu após uma de suas usuais noites de bebedeira.

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Ao mesmo tempo em que investiga o desaparecimento de Wade, Marlowe também se vê às voltas com o suicídio de seu amigo Terry Lennox (Jim Bouton), que havia sido acusado de matar a esposa e supostamente teria fugido levando uma maleta com 350 mil dólares pertencentes ao mafioso Marty Augustine (interpretado pelo cineasta Mark Rydell). Tendo essa intrincada teia de mistérios em mãos, Altman aproveita para jogar com os arquétipos do gênero, transportando-os para a realidade setentista. Essa mudança de ambientação evidencia um proposital anacronismo na composição da figura de Marlowe. Vestindo sempre terno e gravata, fumando cigarros sem parar e dirigindo seu carro antigo, o detetive parece totalmente deslocado do cenário colorido, ensolarado e ainda envolto nos resquícios da contracultura da Los Angeles da época.

Do apartamento com elevador privativo no alto de uma colina até as vizinhas hippies que praticam yoga de topless, tudo ao redor de Marlowe é criado para que o espectador o enxergue como um corpo estranho no ambiente. Ainda assim, o personagem se mostra alheio a esse deslocamento, sem dar a ele tanta importância. Carregado de um cinismo permanente, o Marlowe reimaginado por Altman mantém um inabalável ar de deboche frente aos acontecimentos, mesmo quando é preso ou até ameaçado de morte. Elliot Gould encarna o papel de modo soberbo, se encaixando perfeitamente no estilo verborrágico de Altman. Marlowe fala sem parar, muitas vezes consigo mesmo, e Gould profere estas falas com naturalidade, transmitindo a sensação de improviso. Os diálogos com o escritor à la Hemingway vivido por Sterling Hayden talvez sejam os melhores exemplos desse caráter livre e descompromissado.

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Se Marlowe parece mais interessado em seu gato do que nos casos que investiga - a longa sequência que abre o filme, com o detetive tentando alimentar seu companheiro felino é o sinal mais claro disto – Altman também demonstra interesse em outros elementos além da trama policial. Não que o cineasta abandone por completo os signos fundamentais do film noir, pois estão lá o momento no bar com direito a pianista, a mulher fatal, etc. Mas Altman prefere se apropriar destes signos para criar algo particular, com a liberdade para ater-se a detalhes aparentemente supérfluos - como a já citada cena inicial ou aquelas que envolvem o porteiro que imita atores clássicos -, mas que contribuem para a composição da personalidade de seu protagonista e da aura satírica do longa.

O diretor chega a colocar o espectador como um voyeur que participa das investigações, ao filmar diversas cenas como se a câmera estivesse à espreita entre arbustos ou através de vidros e frestas, mas brinca habilmente com a inversão de expectativas, como em um dos diálogos entre Eileen e o marido em que o foco da imagem se atém ao reflexo de Marlowe se afastando até a praia. Altman também quebra o tom humorado do longa com rompantes de violência, como na marcante cena em que o mafioso Marty Augustine interrompe subitamente seu discurso polido com uma garrafada no rosto da namorada. Tudo isso registrado pela fotografia magistral de Vilmos Zsigmond e embalado pela trilha de John Williams e de Johnny Mercer, que trabalham o tema principal “The Long Goodbye” em diversas releituras, incluindo uma versão ao estilo marcha fúnebre mexicana.

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No fim das contas, mais do que a solução do confuso enredo policial, interessa a Altman testar os limites da postura de Marlowe. Depois de um aparente desfecho anticlimático, o detetive rompe sua bolha de indiferença para apresentar outras facetas, indo do patético – perseguindo o carro de Eileen – ao surpreendente, como no real clímax do longa. É aí que Altman realiza a subversão derradeira que torna O Perigoso Adeus uma obra tão singular, concluída em um plano de fina ironia. O diretor prova que todos se importam com algo. Seja com uma traição ou com um simples gato perdido.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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Grade crítica

CríticoNota
Marcelo Müller
9
MÉDIA
9

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