Crítica

Depois de se aventurar pelo terreno do film noir com O Perigoso Adeus (1973), Robert Altman manteve seu olhar direcionado ao universo do crime com a realização desta adaptação do livro Thieves Like Us, de Edward Anderson. Em Renegados Até a Última Rajada, o cineasta troca a trama de detetives particulares e femme fatales por uma história de amor fora da lei passada na década de 1930 - durante o período da Grande Depressão - que flerta com os símbolos do gangsterismo. O enredo do longa apresenta Bowie (Keith Carradine), Chicamaw (John Schuck) e T-Dub (Bert Remsen), três condenados que acabam de escapar de uma prisão no Mississippi. Após a fuga, o trio busca refúgio no posto de gasolina de um antigo amigo antes de iniciarem uma série de assaltos a banco.

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Ao mesmo tempo em que as ações do bando ganham notoriedade, colocando toda a polícia do estado em seu encalço, Bowie se apaixona pela jovem Keechie (Shelley Duvall), iniciando um romance que o faz refletir sobre seu futuro na vida criminosa. A trama do livro de Anderson já havia sido adaptada pelo grande Nicholas Ray em seu primeiro longa, o cultuado Amarga Esperança (1948), cuja abordagem difere bastante da visão proposta por Altman. Se a versão de Ray ainda se aproxima da estrutura mais sóbria dos policiais clássicos - mesmo que possua a atmosfera sombria típica da obra do “poeta da noite” -, a de Altman é calcada no naturalismo e no despojamento formal típicos do cinema norte-americano autoral da década de 1970.

Não à toa, Renegados Até a Última Rajada guarda certas semelhanças, além da tradução do título em português, com Bonnie e Clyde: Uma Rajada de Balas (1967), de Arthur Penn, um dos marcos cinematográficos que pavimentaram caminho para o surgimento da geração da Nova Hollywood, da qual Altman foi um dos maiores expoentes. Assim como em O Perigoso Adeus, o cineasta realiza uma subversão dos arquétipos do gênero em questão e os readequa ao seu estilo. O termo gângster surge apenas como uma referência iconográfica, pois os bandidos de Altman em nada se assemelham às figuras romantizadas de Dillinger e Al Capone, retratadas diversas vezes nas telas, por exemplo. Não há glamour na rotina de crimes de Bowie e seus comparsas, e rótulos como vilões, heróis ou anti-heróis não se enquadram no universo imaginado pelo diretor.

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Os personagens do longa transbordam realismo e Altman simpatiza com esses seres marginalizados sem tentar torná-los dignos de pena ou mesmo julgá-los. São pessoas comuns levadas a uma situação extrema pelas mais diversas circunstâncias e que parecem não ter outra escolha a não ser aceitar sua realidade. Para Bowie e os outros, o crime e a violência estão enraizados em suas essências, algo que Altman faz questão de evidenciar no registro de momentos aparentemente banais do dia a dia. Todas as sequências envolvendo Mattie (Louise Fletcher), a cunhada de T-Dub, e seus filhos exemplificam bem esta proposta, como no jantar em que todos agem normalmente enquanto leem sobre os assaltos no jornal ou quando os ladrões ensaiam o próximo golpe com a ajuda das crianças.

Altman constrói a narrativa sem pressa, com apreço aos detalhes - o longo plano-sequência da fuga do trio na cena de abertura, a cena de Bowie conversando com o cachorro, o almoço do diretor da prisão com sua esposa – e engenhosamente costura a trama através de trechos de programas de rádio que substituem a trilha sonora, como O Sombra em um momento de suspense ou uma leitura de Shakespeare, Romeu e Julieta, na cena de sexo entre Carradine e Duvall. A escolha do casal protagonista, aliás, é certeira, pois além de ótima química, ambos fogem dos padrões de beleza hollywoodianos. Duvall e Carradine possuem feições singulares, estranhas, mas que carregam um charme e um ar de inocência inegável, características que os tornam ideais para os papéis.

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A boa dinâmica entre os dois é fundamental para o sucesso do longa, afinal, é no amor que compartilham que Bowie e Keechie encontram algo a que se agarrar. Aos poucos, o humor leve que permeia o filme se esvai e a melancolia toma conta por completo. A violência rompe ferozmente a bucólica paisagem sulista norte-americana e Altman conduz suas prezadas figuras ao final trágico inevitável que já se anunciava desde o início. No cenário desesperançoso da América na Grande Depressão, Altman sintoniza o rádio uma última vez, transmitindo o anúncio do governo sobre a implantação dos programas do New Deal. Ao som do pronunciamento, resta ao povo abrir uma nova garrafa de Coca-Cola, subir as escadas e aguardar o trem rumo a um futuro de incertezas.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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