Crítica

O caminho do novo é estreito e penumbroso. A força resultante destas condições, porém, expande e ilumina. Não à toa, nas cenas iniciais do documentário sobre Hélio Oiticica (1937 – 1980), acompanhamos o tortuoso caminho de uma formiga em direção contrária às demais. Tal qual a imagem das ovelhas em Tempos Modernos (1936), a ilustração sugere boa parte do que veremos no decorrer do filme.

Neto do conhecido anarquista brasileiro José Oiticica (1882 – 1957), a ideia de um espírito livre e contestador impregnou o jovem Hélio desde cedo. Oiticica estudou à margem das escolas formais e aos dez anos mudou-se com a família para os Estados Unidos. Desde então, aprendeu a desviar das convenções e a se desvencilhar dos modismos. Foi assim nos anos 60, quando, apesar dos protagonismos da Tropicália, do Cinema Novo e do Neoconcretismo, não se filiou a nenhum. Embora os movimentos artísticos lhe parecessem abusivamente insuficientes e restritivos, isso não significava deixá-los passar despercebidos. Pode parecer irônico, mas por trás da rebeldia a anarquia anseia um estado harmônico.

O gosto pelas ruas – não urbanisticamente, mas pelo seu conteúdo, como um Nelson Rodrigues visual -, pelos acontecimentos mínimos da vida; a paixão pelo arsenal de cores da escola de samba da Mangueira e o êxtase provocado pela revolução musical de Jimi Hendrix moldaram um dos artistas brasileiros mais originais de todos os tempos, um artista que pensou a classe além do compromisso pessoal de criar objetos, mas com a responsabilidade coletiva de idealizar práticas. É na expectativa de transmitir ao público o gênio criador deste homem que o documentário traça a sua forma. Para isso, em muitos momentos abre mão da contextualização precisa, da narrativa linear e de explicações introdutórias ao público que desconhece Oiticica ou as artes plásticas. Em compensação, estabelece uma relação próxima à produção artística de Oiticica ao apresentar um produto inspirado nas suas inspirações.

A direção do documentário é assinada pelo filho de Oiticica, César, em sua primeira incursão no cinema. A inexperiência tem suas virtudes. A direção acerta ao escolher uma forma mais fluida, não limitada pelas estruturas tradicionais do gênero. A mescla peculiar, por vezes pouco regulada, entre a narração em off e as imagens da produção do artista proporcionam um ritmo instigante, propício à apreciação estética. Nota-se o incessante e valioso esforço do diretor ao tentar transmitir – quase recriar – para o espectador o conjunto das influências de Oiticica. A liberdade dessa experiência tem o seu preço à medida que não se sabe a força que a postura do filme causa em um não iniciado na área. É possível que haja ruídos entre a obra e o público; possível que o acusem de “cifrado” ou “autorreferente” – os adjetivos para o escárnio são ilimitados. Porém o risco faz parte da vida e da arte. Se a originalidade foi a força motriz do pai, não se deve esperar menos do filho. 

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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