Crítica

Samuel Beckett, Julio Cortázar, Marguerite Duras, Charles Baudelaire, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Serge Gainsbourg. Estes são alguns dos grandes nomes inscritos nas lápides do Cemitério de Montparnasse, em Paris, registrados pelas câmeras do cineasta Vladimir Carvalho em Cícero Dias: O Compadre de Picasso. Entre tantas personalidades históricas, encontra-se também o pintor Cícero Dias (1907 – 2003), em cujo túmulo se lê o epitáfio: “Eu vi o mundo... ele começava no Recife”, título de uma de suas obras mais importantes. Partindo do fim, o corpo enterrado em solo francês, Carvalho salta para o início, a infância num engenho da Zona da Mata pernambucana, e assim refaz a trajetória artística e pessoal de um dos nomes mais significativos do movimento modernista brasileiro.

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Carvalho apresenta uma narrativa cronológica e bastante direta, utilizando imagens das obras e também do acervo particular de Dias, além de depoimentos de historiadores, especialistas, familiares, amigos – como o escritor Ariano Suassuna – e trechos de entrevistas do próprio pintor. Desta forma, acompanhamos a forte ligação que o artista desenvolveu desde muito cedo com o ambiente que o cercava, algo que influenciou diretamente a temática da primeira fase de sua obra. Filho de aristocratas rurais, Dias retratava nas telas o cotidiano do engenho Jundiá, a propriedade de sua família, local que, mesmo simbolizando o universo particular do artista, ainda refletia os principais traços históricos e culturais de Pernambuco. As cores quentes e vivas, as figuras femininas sempre exalando sexualidade, os elementos da terra e do campo estão presentes nas aquarelas de ares oníricos concebidas por Dias neste período.

O reconhecimento não demorou muito a chegar e Dias passou a conviver com os maiores expoentes do modernismo nacional da década de 1920, como Mário de Andrade, Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral. Em 1929, organizou ao lado de Gilberto Freyre e Manuel Bandeira o 1º Congresso Afro-brasileiro, evento comparado à Semana de Arte Moderna de 1922 por sua repercussão, e nos anos seguintes participou de diversas exposições. Durante a apresentação desta fase inicial, Carvalho e seus entrevistados fazem questão de ressaltar a personalidade irreverente, e por vezes transgressora, do pintor, que mesmo sendo “filho de senhores de engenho” sempre adotou uma postura revolucionária e questionadora não só em relação à arte, como também à política.

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No segundo ato, Carvalho narra a ida de Cícero para a Europa, mais precisamente Paris, onde passa a ter contato com o surrealismo e com o abstracionismo, tornando-se amigo próximo de pintores como Miró e especialmente Picasso, que viria até mesmo a ser padrinho da filha de Dias, além de outros artistas, como o poeta Paul Éluard. É também na França que Dias conhece seu grande amor, Raymonde, com quem ficaria casado até sua morte. Nos relatos deste período, Carvalho mescla passagens mais dramáticas – a fuga durante ocupação nazista na Segunda Guerra Mundial – a outras curiosas e bastante divertidas, como encontro de Dias com Rita Hayworth, quando este pagou a um funcionário do barco em que ocorreu o evento para roubar os sapatos da musa hollywoodiana.

Este equilíbrio de tons faz com que a narrativa envolvente adotada por Carvalho flua com naturalidade, intercalada por belas narrações em off em primeira pessoa feitas por Othon Bastos e Fernanda Montenegro, representando Cícero e Raymonde. Outro elemento bem utilizado pelo cineasta é a representação visual do universo lírico de Jundiá, com imagens do engenho nos dias atuais, já em ruínas, captadas por seu irmão, o diretor de fotografia e também cineasta Walter Carvalho. Afinal, foi este imaginário de Jundiá que sempre guiou e fundamentou a obra de Dias, mantendo o elo com suas raízes, mesmo na fase mais abstrata de sua carreira, no retorno ao Brasil, quando foi fortemente atacado por críticos mais conservadores.

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No contraste entre o rio Capibaribe e o rio Sena, ou na Rosa dos Ventos do Marco Zero na Praça Rio Branco, Carvalho reafirma que Recife é parte indissociável de Cícero Dias. O lugar onde, para o artista, o mundo começava e terminava.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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