Crítica


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Sinopse

Uma grande casa em construção. Em diferentes épocas, este imóvel é ocupado por uma família de origem humilde, por um corretor desesperado para vendê-la, e por uma proprietária em busca de novos inquilinos. Todos adoram o local, mas logo percebem que será muito mais difícil sair deste espaço do que imaginavam.

Crítica

É tudo uma questão de controle - ou melhor, de falta de controle. The House (2021) pode ser considerada uma fábula a respeito do livre arbítrio. Três grupos de personagens se mudam para o mesmo imóvel, em diferentes épocas. Eles se apaixonam pelo local, enxergando o potencial para uma vida de luxo, uma venda lucrativa ou um painel vasto de inquilinos. Aos poucos, no entanto, são domados pela mansão, engolidos por ela - de maneira quase literal, vale avisar. Esta linda casa está livre de fantasmas, monstros, bruxas, memórias de assassinatos e outros motores recorrentes no terror decorrente de assombrações. O suspense decorre da própria construção, em seu aspecto mais concreto. Em um dos episódios, um estranho arquiteto reconfigura as paredes e a estrutura durante a noite, e quanto as crianças acordam, a escada foi embora. Em outro caso, uma infestação de insetos habita a fundação de cômodos e andares. No capítulo final, o espaço será depredado, engolido pela natureza. A noção de lar, associada à proteção familiar, ao conforto e à intimidade, vira pelo avesso quando a propriedade se volta contra aqueles que pareciam governá-la. Controlamos as nossas posses, ou somos controlados por elas? Inútil atribuir a culpa a algum fenômeno da modernidade, alguma vertente específica do consumismo e do capitalismo: a história atravessa épocas bastante diferentes, nas quais a sina do local possessivo e ciumento se reproduz. O verdadeiro protagonista, do início ao fim, será a casa.

Os três segmentos possuem o mérito de fugir à obviedade dos discursos, preferindo um mergulho na fantasia, propenso a leituras múltiplas. Em todos os casos, a interação com este espaço resulta ambígua, entre a satisfação (a mansão seria um presente dos deuses, vindo por milagre aos proprietários) e maldição (as paredes e chãos manifestam vida própria, voltando-se contra os ocupantes). Assim, alterna-se entre a comédia e o suspense, com toques preciosos de horror. Uma cena musical estrelada por ácaros e baratas condensa o aspecto tão lúdico quanto grotesco das iniciativas que nos fazem sorrir por sua criativa implausibilidade, e nos incomodam ao percebermos o quanto, no fundo, se aproximam do real. Diz-se que as melhores ficções científicas são aquelas capazes de utilizar alienígenas, naves espaciais e aventuras em eras futuras para refletir sobre os males do presente. O projeto concebido por Enda Walsh, que roteirizou a trinca de histórias, efetua um mergulho semelhante nos nossos tempos. A obsessão de cada grupo de personagens por tornar o imóvel melhor, mais funcional, belo e lucrativo provoca sua ruína, literalmente. O autor foge às mensagens simples, do tipo que pregaria contra a ganância, ou defenderia a família acima dos bens materiais. Pelo contrário, ele reforça a solidão dos indivíduos neste local gigantesco que nunca ocuparão por completo. A Casa Tomada (1946), conto clássico de Júlio Cortázar, seria outro título excelente para as narrativas interligadas. Os moradores serão vítimas de suas ambições, mas também de uma natureza incontrolável. 

Nenhum deles revida contra as catástrofes ocorridas: quando percebem a mansão sendo desconstruída, infestada por criaturas asquerosas ou inundada pela água, serão obrigados a sucumbir à força maior, apesar dos esforços de resistência. Os roteiros operam na chave da gradação: lança-se um único conflito no início das tramas. Ele aumenta, aumenta, aumenta, até a inevitável explosão. Talvez estes fatores fossem cruéis e perversos num registro realista. Em contrapartida, a escolha pela animação atenua o aspecto sombrio de cada episódio (o que talvez seja ainda mais perverso, vale ressaltar). Os bonecos de pano, com as proporções distorcidas em relação ao rosto humano, despertam risadas, e criam um efeito gracioso quando o material macio representa madeira, fogo e água. Um rato gentil de roupas sociais, com um buraco adequado à saída do rabo, e uma gata de trajes humanizados provocam sorrisos. O uso de bonecos e animais disfarça, ao menos à primeira vista, a óbvia representação de vícios humanos. A figura do vilão, ou do antagonista, ocupa um plano secundário: o arquiteto desaparece; os parentes grosseiros nunca retornam; os supostos invasores são corteses, e explicam suas motivações. Assim, os pobres sujeitos sufocados pela presença alheia têm apenas a casa contra quem reclamar. E como se combate uma casa?

A animação em stop-motion explora muito bem as capacidades específicas deste estilo, enquanto exibe uma variedade surpreendente de traços, cores e perspectivas, graças aos cineastas distintos em cada capítulo. Um estranho corpo misto de humano, rato e inseto, que domina a segunda trama, justifica sua fascinação. A névoa e o mar engolindo uma pousada isolada criam uma impressão de pós-apocalipse em cor ocre, agradável, que talvez o live-action transformasse em algo grave demais. Em paralelo, a coisificação de humanos, aproximando-os da imagem de móveis, adquire um tom semelhante à fábula. Ao contrário das animações que enxergam nas tecnologias digitais a capacidade de se aproximar ao máximo do real, esta forma de criação explora o caminho oposto. Por que copiar fotograficamente o mundo se esta linguagem permite sonhar, oferecendo algo que os olhos não veriam fora das telas? Embora sejam diretores com propostas distintas, eles se unem na condução melancólica das vozes, incluindo nomes de peso como Helena Bonham Carter, Matthew Goode, Mia Goth e Miranda Richardson. Os intérpretes sublinham o teor deprimido das narrativas, evitando o espetáculo da decadência. Enda Walsh consegue observar as ruínas com uma ternura impressionante.

Por fim, The House poderia ser contestada pelo desnível entre as histórias autônomas - uma sina previsível em projetos episódicos. A experiência se inicia de maneira sombria, então abraça uma loucura próxima de Alice do País das Maravilhas, até se encerrar na contemplação de um apocalipse delicado. O espectador preferirá um trecho ou o outro, porém deve ser capaz de enxergar a estrutura única costurando as narrativas. O resultado chega ao streaming com o rótulo de “especial" - nem um filme, nem uma série. Alguns veículos e bancos de dados o catalogam enquanto longa-metragem, outros, como uma primeira temporada, ou ainda minissérie e série antológica. Este seria um sintoma dos nossos tempos: a abordagem cada vez mais cinematográfica dos produtos televisivos, e cada vez mais comercial das iniciativas autorais no interior de grandes corporações. Chega-se ao ponto em que as fronteiras desabam, a exemplo das paredes da casa em construção - a distinção entre série e filme perde a importância. Esta “experiência audiovisual” serve a testar formatos, roteiros, modos de engajamento e comunicação. Neste sentido, possui uma ousadia conceitual que ultrapassa os potentes e tristes discursos. Além disso, permite navegar nos mares pouco explorados da animação que não precisa jorrar sangue para buscar o público adulto, nem se entupir de cores e lições de moral para apelar às crianças. Em termos de classificação etária, o projeto pode ser apreciado por qualquer espectador acima de 12 anos, e tem potencial de provocar reflexão em qualquer público. Esta é uma qualidade notável para uma criação audiovisual, seja ela filme ou série.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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