Crítica


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Sinopse

Otis é um adolescente socialmente inapto que vive com sua mãe, uma terapeuta sexual. Apesar de não ter perdido a virgindade ainda, ele é uma espécie de especialista em sexo. Junto com Maeve, uma colega de classe rebelde, ele resolve montar sua própria clínica de saúde sexual para ajudar outros estudantes da escola.

Crítica

Na primeira temporada de Sex Education, Otis (Asa Butterfield) surgiu como um jovem dotado de incomum conhecimento acerca da tão curiosa seara sexual, embora não tivesse experiência prática e fosse perseguido por um sem número de angústias que lhe interditavam, inclusive, o prazer da masturbação. No segundo ano, a julgar pelos primeiros episódios, o problema seria apenas levemente deslocado, mas com o paradoxo mantido enquanto um significativo pilar narrativo. As ereções em momentos constrangedores, a necessidade de se "aliviar" numerosas vezes ao longo do dia, isso poderia muito bem criar uma dinâmica de certa forma repetida, embora com contornos um pouco diferentes. Todavia, a evolução do personagem passa pela delineação mais complexa de sua personalidade gradativamente descentralizada. A série continua sendo protagonizada por ele, obviamente, mas uma atenção significativa aos dramas dos coadjuvantes permite a ele expandir-se, desvencilhar-se de suas virtudes, mostrar-se menos heroico e vulnerável, assim ensaiando o amadurecimento.

Otis parece desesperado para agradar todos no entorno. Busca levar a namorada, Ola (Patricia Allison), ao gozo, aconselha o melhor amigo, Eric (Ncuti Gatwa), e, ainda por cima, dá uma de filho controlador à mãe, Jean (Gillian Anderson), complicando-lhe o namoro. Mas é apenas próximo ao encerramento desse ótimo segundo ano que a sua trajetória de evolução fica mais clara, que o medo de assemelhar-se ao pai ausente é atrelado à gama de problemas de relacionamento. O protagonista é, antes disso, ligeiramente tirado do foco em alguns momentos estratégicos, para o bem das figuras secundárias que ganham espaço considerável para crescer e tornar a série ainda mais substancial, e dele próprio, que não fica preso numa camisa de força de predicados. Há várias histórias se desenrolando em Sex Education, programa capaz de reinventar-se em perder a personalidade que o tornou um êxito. A dinâmica dos atendimentos é bastante reduzida, inclusive porque atravessada pela “concorrência” da especialista de plantão para sanar as dúvidas dos alunos.

Eric ganha terreno. Ele se divide entre o afeto por Rahim (Sami Outalbali), companheiro orgulhoso e seguro, e o amor pelo complicado e reprimido Adam (Connor Swindells), outro coadjuvante que galga degraus, apresentando-se como alguém frustrado em estado de desorientação, inclusive porque não lhe é permitido ser autêntico. Sex Education investe bastante na intrincada relação entre pais e filhos na segunda temporada, vide o elo entre Otis e Jean ganhando matizes e sendo desvelado para além das vicissitudes da juventude do menino. O diretor Michael (Alistair Petrie), que parece completamente decalcado do universo dos adolescentes de John Hughes – principalmente por se aproximar do patético ao tentar exercer uma autoridade castradora – é o exemplo de pai que acaba prestando um enorme desserviço ao filho em nome de uma disciplina cega e de valores ultrapassados pela urgência do diálogo e do entendimento das tantas idiossincrasias alheias.

Maeve (Emma Mackey) luta bravamente contra as próprias chagas para tentar reatar o carinho pela mãe aparentemente arrependida dos anos de negligência. Embora conserve certa leveza, que seja multicolorido e, às vezes, pareça ambientado num espaço de conto de fadas, com escolas impecáveis e casas relativamente abastadas que oferecem uma geografia uniformizadora, Sex Education presta um serviço ao falar tão desbragadamente sobre sexualidade e outras questões que, se mal resolvidas, podem virar verdadeiras nódoas. O feminismo se impõe com força, ora por meio da exemplificação da sororidade – e o episódio da detenção, à lá Clube dos Cinco (1985), é o indício mais bonito disso – ora por conta da jornada curiosa de Aimee (Aimee Lou Wood). Inicialmente, ela não se entende abusada por um homem que ejaculou nela no ônibus, não contextualiza a violência que acabara de sofrer. Uma vez absorvida essa conscientização árdua, a garota passa a ser acossada pelo fantasma de um machismo cotidiano e torpe. Essa curva é desenhada com habilidade.

Dos personagens novos, Viv (Chinenye Ezeudu) e Isaac (George Robinson) funcionam para oferecer possibilidades de abordagem. Ela começa como auxiliar circunstancial do esportista que tenta se encontrar, mergulhada em estudos para afastar a solidão oriunda do seu não encaixe social. Essa coadjuvante cresce até ser imprescindível à Jackson, ter uma curva própria e, quiçá, propiciar um casal a priori improvável que reforçaria a bem-vinda subversão de lugares-comuns. Já o cadeirante se instala nessa teia como um oponente ferrenho de Otis, alguém que, a despeito de suas limitações físicas, se candidata a interesse amoroso de Maeve. A simples presença de ambos oferece à série instrumentos para levantar pontos absolutamente pertinentes, como os padrões que inevitavelmente asfixiam os guiados simplesmente pelas aparências. O ótimo desempenho dos intérpretes se encarrega de valorizar o texto e o modo como os dois são colocados no enredo.

Jackson (Kedar Williams-Stirling), o esportista que chega a atentar contra a própria integridade física para fugir das pressões familiares, também é um sintoma evidente desse olhar abrangente que Sex Education lança sobre o turbilhão de questões que sobrevém à saída da infância. Em meio a tanta gente se descobrindo, querendo gozar livremente (sem noias com seus corpos), tateando por caminhos nem sempre claros em busca da melhor maneira de seguir sem penar demais, Otis provoca sofrimento numa medida semelhante a da própria angústia. Especialmente por tentar desesperadamente agradar para ser amado, ele magoa a namorada, a crush, quase coloca em risco uma amizade essencial e deixa exposta a sua falibilidade. É exatamente nesse processo engenhoso de conferir nuances ao protagonista enquanto reforça a singularidade dos coadjuvantes que faz o ano dois ser tão instigante. Essa delineação, partindo de arquétipos então paulatinamente relativizados, é um procedimento que permite identificação imediata, mas sem negligenciar as complexidades.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.