Crítica


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Sinopse

Rick Sanchez é um cientista genial e alcoólatra que foi morar com a família de sua filha Beth, uma cirurgiã cardíaca de equinos. Ele divide seu tempo entre desenvolver projetos altamente tecnológicos em seu laboratório (garagem da casa de Beth) e levar seu neto de 14 anos Morty em aventuras perigosas e surreais pelo Multiverso. Combinados com tensões preexistentes dentro da família, esses eventos causam ao sensível Morty muito angústia em casa e na escola.

Crítica

Depois de uma cabeça gigantesca surgir no céu e impor aos terráqueos a escolha entre um concurso de música interplanetário ou a destruição, um professor de matemática aqui na Terra não demora a propor: “Tem uma cabeça enorme no céu alterando o clima, vamos ser racionais. Vejo vocês na igreja!”. E se tal fala consegue chamar tanto a atenção quanto os outros elementos descritos neste parágrafo é porque em sua segunda temporada Rick e Morty continua habilidosa ao empregar o absurdo de um multiverso tão rico e caótico para comentar naturezas essencialmente humanas – o que, aliás, é o mérito de quase todas as grandes obras de ficção científica. Que nos faça rir disso tudo também é apenas mais um bônus oferecido pelas narrativas de Dan Harmon e Justin Roiland.

Aliás, o humor da série continua fascinante no modo como funciona em diversas camadas. Para quem não conhece, acompanhamos aqui as aventuras de um cientista beberrão e de seu neto através de planetas alienígenas e realidades alternativas. Isso já dá uma identificação geral com os sentimentos inspirados pelo projeto, pois o cinismo e a desesperança com que Rick enxerga as diversas espécies e mundos pelos quais passa se comunica bastante com o ceticismo que acomete a maioria das nações neste começo de século, em que nos vemos impotentes enquanto testemunhas de um retrocesso global em direção ao conservadorismo. Os personagens são confrontados o tempo inteiro por dimensões repletas de criaturas e ecossistemas, mais ou menos evoluídos, mas que carregam um estigma em comum: a efemeridade. Esse medo de apenas ser, sem poder fazer diferença frente ao imensurável desconhecido, aqui representado pelo rico universo inexplorado, é uma fobia enraizada na natureza humana. E sendo H.P. Lovecraft um dos autores mais representativos dessa temática, não surpreende que recorrentemente Rick e Morty confronte seus protagonistas com abismos de inexistências e até monstros que remetem às criações do escritor, como a dimensão da indecisão em que ficam presos já no primeiro capítulo, nos episódios em que a Terra é ameaçada de aniquilação total por parasitas ou, enfim, por cabeças gigantes no céu, e ainda, em tempo, por monstros literalmente construídos pelo inconsciente de Jerry e Beth, os pais de Morty.

A leveza com que apresenta traços tão humanos é um dos primeiros elementos que torna o seriado empático, apesar do seu niilismo intrínseco. De forma similar, Harmon e Roiland também evidenciam algumas de nossas mais vis características como espécie ao construir situações absurdas em torno de reflexões óbvias – é o caso da bateria de carro que abriga um universo inteiro, onde os habitantes não fazem ideia de sua existência ter o único propósito de fazer um veículo funcionar, mas que também possuem uma bateria do mesmo tipo. Não por acaso, os cientistas por trás dos projetos justificam a ética de suas invenções com o Capitalismo. Num caso parecido, uma máquina programada para proteger Summer, a irmã mais velha de Morty, tentando desempenhar a sua função, acaba encontrando a solução para um conflito histórico entre duas espécies rivais, mas apenas depois de ser radicalmente proibida de usar violência de qualquer tipo.

Claro que o humor também se baseia nas inúmeras referências que povoam os diálogos estilo screwball (rápidos, ácidos, sarcásticos, inusitados), cada qual trazendo consigo uma carga que, quando percebida e levada em conta, enriquece a experiência do espectador que tem um repertório mais elaborado, sem prejudicar e subtrair daquele que deixa a piada passar despercebida. Porém, se no primeiro ano quase todos os episódios eram construídos em cima de uma “homenagem” específica (Jurassic Park, A Origem, No Templo das Tentações), aqui o seriado assume uma autonomia bem maior, passando a criar uma mitologia própria e caminhando rumo à autossuficiência. Por exemplo, num dos melhores exemplares desta segunda temporada, acompanhamos um roteiro de câmara, que é quando a trama fica confinada basicamente num único ambiente, enquanto os personagens lidam com alienígenas parasitas de memórias – o que permite aos criadores brincarem com as expectativas do espectador que já conhece a configuração da família Smith, inserindo figuras que podem ou não ser um dos vilões.

Aliás, criatividade é o que não falta ao seriado – de pontuações geniais como os gatinhos de Schrödinger flutuando na indecisão, até os inúmeros e estúpidos programas de televisão interplanetários que ganham um episódio inteiro para si, outra vez, os argumentos continuam a demonstrar uma consistência admirável, ainda que aqui se obriguem a funcionar mais dependentes uns dos outros, e pelo menos o primeiro e o último episódio se dedicam a dar continuidade ao arco da família Smith. Assim a série se leva mais a sério, já que animações costumam soar inconsequentes para o espectador, uma vez que mantêm sua configuração básica inabalada pelas desventuras de seus personagens.

E aqui reside outro diferencial de Rick e Morty. Enquanto um Homer Simpson ou um Peter Griffin inspiram o riso por ser, eles mesmos, caricaturas de comportamentos que repudiamos na vida real (ou que deveríamos repudiar), Rick, mesmo egoísta, indiferente e megalomaníaco, surge como uma figura alquebrada, trágica e amargurada. A sombra de um gênio outrora brilhante e otimista, que agora existe apenas de maneira subjacente no homem que, ao entreouvir uma conversa de sua família, decide assumir um sacrifício que consegue a proeza de ser simultaneamente mesquinho e nobre – e é apenas apropriado que seja a dolorosa Hurt de Johnny Cash acompanhe esse momento.

Não que Os Simpsons (1989-) e Family Guy (1999-) sejam piores por isso, muito pelo contrário, ambas as séries são bastante eficientes dentro do seu próprio formato. Porém, ao encontrar em Rick uma figura que justifica sua frieza e egocentrismo com objetivos autodestrutivos, o seriado denota uma humanidade que afasta o riso como único motivo de sua existência. Claro que Rick e Morty é um seriado de humor. O mérito é que isso não o impede de usá-lo para escavar nuances universais da nossa espécie – note como, além de divertida, a piada da creche dos Jerrys implica em mundanidade, numa supressão de identidade que deve aterrorizar mesmo que de forma inconsciente qualquer espectador. E é justamente ao nos fazer rir de medos inexoráveis que os criadores conseguem tão habilmente angariar nossa simpatia por essa figura monstruosa que é o avô de Morty. Afinal, também convivemos diariamente com o absurdo, o trágico e a indiferença do cosmos sobre isso. Estamos apenas a uma arma de portal de nos tornar mais parecidos com Rick.

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é formado em Produção Audiovisual pela PUCRS, é crítico e comentarista de cinema - e eventualmente escritor, no blog “Classe de Cinema” (classedecinema.blogspot.com.br). Fascinado por História e consumidor voraz de literatura (incluindo HQ’s!), jornalismo, filmes, seriados e arte em geral.
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