Crítica


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9 votos 7.2

Sinopse

Rick Sanchez é um cientista genial e alcoólatra que foi morar com a família de sua filha Beth, uma cirurgiã cardíaca de equinos. Ele divide seu tempo entre desenvolver projetos altamente tecnológicos em seu laboratório (garagem da casa de Beth) e levar seu neto de 14 anos Morty em aventuras perigosas e surreais pelo Multiverso. Combinados com tensões preexistentes dentro da família, esses eventos causam ao sensível Morty muito angústia em casa e na escola.

Crítica

Na superfície, Rick e Morty é uma mistura de De Volta Para o Futuro (1985) e Doctor Who (2005-). Porém, quando, já no primeiro episódio, uma simples gag dá conta de enfocar o catarro de um alienígena se transformando num ser vivo, que cresce, atinge a plenitude, a velhice e então morre diante dos olhos dos protagonistas, isso no espaço de alguns poucos segundos, fica claro que entreter o espectador com aventuras repletas de otimismo e inocência não é bem o ponto desta série animada. Muito pelo contrário. Eventos trágicos e absurdos como esse são recorrentes na criação de Dan Harmon e Justin Roiland, que constroem com humor cínico e criatividade aguçada um universo onde o encantamento com novos mundos e espécies rapidamente cede lugar à percepção do quão pequenos, efêmeros e patéticos cada um deles é – incluindo nós mesmos.

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Isso, claro, porque os enxergamos pela ótica de Rick, gênio beberrão que, com uma arma de portal (capaz de abrir passagens interdimensionais), leva seu neto Morty para ajudá-lo em esquemas duvidosos noutros universos. Sarcástico e inconsequente, o cientista parece não se maravilhar com quase nada, mesmo que ele e Morty passem por planetas e aliens dos mais diversos tipos. Imune à beleza da proliferação da vida e da diversidade interplanetária, Rick é um homem seco, descrente quanto a qualquer tipo de vida conseguir se desenvolver sem egoísmo. Portanto, segundo esse prisma, o sentido de estar vivo é pensar apenas em si mesmo. Dono desse niilismo dawkiniano (pensem numa filosofia que mistura Nietzsche e Richard Dawkins), o protagonista, porém, não consegue evitar uma bússola moral intrínseca à sua personalidade, denunciando um indivíduo que, no passado, equilibrava gentileza e pragmatismo tão bem quanto um Doc Brown ou o famoso Time Lord.

E é daí que Rick e Morty extrai grande parte do seu humor certeiro, pois conversa diretamente com as gerações que vivenciaram esse início de século, cada vez mais céticas após testemunhar todo o tipo de horror e mesquinharia humana num tempo em que elas chegam a nós praticamente ao vivo e de qualquer parte do mundo. A desesperança de Rick frente às maravilhas do universo não é diferente da de qualquer cidadão comum ciente de que jamais viverá o suficiente para poder ver alguma mudança realmente implementada, apesar dos avanços tecnológicos e dos conhecimentos – ou daquela de um pequeno robô ao tomar consciência de que a única função de sua existência é passar a manteiga na mesa do café da manhã. Por isso acaba sendo cômica a forma leviana com que Rick usa os artifícios científicos: criando um parque de diversões dentro do corpo de um sem-teto, usando um raio de miniaturização; paralisando o tempo e o espaço apenas para que seus netos possam arrumar a casa antes dos pais chegarem e arquitetando uma invasão aos complexos sonhos do professor de matemática para Morty melhorar sua nota.

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Mas se Rick é a inconsequência e o egocentrismo em pessoa, do outro lado, seu neto funciona como um contraponto que permite ao espectador não se entregar a um exercício de puro niilismo, o que tornaria a obra muito antipática e esquecível. Naquele que é o melhor episódio da primeira temporada, Morty assume a liderança de uma das aventuras e leva Rick para, aquilo que ele romantiza ser, o cenário perfeito para um ato heroico, apenas para descobrir um mundo tão burocrático e assustador quanto a Terra. E, embora sejamos capazes de rir das escatologias, nosso riso quase nunca é direcionado àquelas figuras, como acontece em Family Guy (1999-) e Os Simpsons (1989-), por exemplo. E aqui é impossível não simpatizar por Morty, enxergando-o de forma tridimensional, pois ao perceber que existe crueldade mesmo num mundo fantasioso, o menino se entrega, não ao cinismo do avô, mas à tristeza e à melancolia.

Na verdade, também não é difícil entender o próprio Rick, principalmente quando percebemos que os problemas intergalácticos só são tão divertidos porque se assemelham aos nossos terráqueos. E um movimento dos habitantes de Plutão que exige o reconhecimento do astro como planeta, por exemplo, se parece muito com o dos negadores do Aquecimento Global e a relação que mantêm com as grandes corporações.

Claro que essa ideia mais geral é construída com uma série de diálogos ácidos dragados direto das comédias screwball, todos repletos de referências que tornam punch lines como “Eu realmente cronenberguizei o mundo”, piadinhas de nicho divertidas de catar. Para além disso, ao invés de segregar um espectador que pode não fazer ideia de quem é David Cronenberg, essas sacadas do roteiro acabam sendo desnecessárias para compreender o desenrolar das tramas, embora enriqueçam a narrativa para os que entendem que uma referência a Jurassic Park (1993) carrega também a temática dos abusos megalomaníacos da ciência, assim como um episódio nomeado em homenagem ao diretor M. Night Shyamalan, certamente envolverá alguma reviravolta que merece a expectativa.

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Além disso, Rick e Morty parece focado na tarefa de criar um mundo povoado e com vida própria, não tendo medo de investir um capítulo inteiro na programação de TV multidimensional, em que versões mais esquisitas dos shows terráqueos reafirmam que a estupidez é universal. E, em meio a isso, consegue evocar momentos emblemáticos e melancólicos, como o desfecho que envolve o enterro de dois cadáveres conhecidos no jardim da família Smith. Da mesma forma, é um seriado capaz de criar subtramas tão interessantes quanto a dos protagonistas e, em pelo menos dois episódios, as desventuras de Summer, Jerry e Beth roubam os holofotes. Num graças a Snuffles e no outro pelos Meeseeks – vocês vão reconhecê-los, e não devem deixar de notar que os conflitos desses seres azuis giram em torno de uma existência indesejada e dolorosa. Tema esse que, apesar de repetido à exaustão, parece se equilibrar com uma humanidade insuspeita numa série em que o protagonista acha que uma boa gag envolve peidos e frases desconexas.

P.S. – quase todos os episódios possuem cenas hilárias pós-créditos.

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é formado em Produção Audiovisual pela PUCRS, é crítico e comentarista de cinema - e eventualmente escritor, no blog “Classe de Cinema” (classedecinema.blogspot.com.br). Fascinado por História e consumidor voraz de literatura (incluindo HQ’s!), jornalismo, filmes, seriados e arte em geral.
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