Crítica
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Sinopse
Depois de se consagrar como um nome da alta gastronomia, um jovem chef volta a Chicago, nos Estados Unidos, a fim de ajudar na administração da lanchonete de sua família.
Crítica
A premissa não é, particularmente, nova. Afinal, trata-se de uma história sobre um personagem ausente – no caso, Michael ‘Mike’ Berzatto, vivido por Jon Bernthal – e a consequência da sua falta naqueles que, de uma forma ou outra, estavam a ele ligados. Só pela escolha de Bernthal, intérprete conhecido na telinha por séries populares como The Walking Dead (2010-2018) e O Justiceiro (2017-2019) e que nos cinema já trabalhou com cineastas como Martin Scorsese, Roman Polanski e Oliver Stone, já serve de indicativo forte o bastante para apontar a relevância deste que partiu sem dizer ‘adeus’, de forma trágica (um suicídio) e egoísta. Talvez essa não seja a melhor maneira de se começar um programa que tem sido considerado como ‘comédia’ (ao menos pelas premiações norte-americanas, que dividem o gênero pela duração: episódios com até 30 minutos é humor, mas se for até 1 hora vira automaticamente drama) – o teor dramático da trama é inegável – mas não deixa de ter o seu lado irônico: afinal, é só pela negação de um que o outro se fará presente. E este é aquele que virá a se tornar conhecido como O Urso. O nome, que também batiza a série, é inusitado. Mas com tanta fome e selvageria em cena, não poderia ser mais apropriado. Uma surpresa que se confirma acertada, assim como o show, uma das melhores apostas em muito tempo.
Mike sai do jogo antes mesmo do início da partida. Logo no capítulo de estreia, quem está no centro das atenções é Carmen ‘Carmy’ Berzatto, o irmão caçula que assume as responsabilidades deixadas para trás por aquele que, vítima de um vício debilitador em drogas cada vez mais pesadas, não teve como sustentá-las. O ramo da família é a gastronomia, e seja pela admiração, mas também pela repulsa, os dois seguem caminhos, no entanto, diversos. Mike abriu um boteco de esquina numa zona barra pesada de Chicago para vender sanduíches de carne para moradores e trabalhadores da região, o The ‘Original’ Beef. Carmy, por sua vez, foi para Nova York e se tornou um chef conceituado, ainda que fosse vítima dos abusos verbais do proprietário do restaurante onde trabalhava, da constante pressão, com a falta de tempo para si mesmo e pela distância da família. Quando o irmão se vai, esse buraco que deixa é tão grande que por pouco não leva tudo consigo: o negócio, os laços, o que havia sido conquistado. Um tio – com quem Mike possuía uma dívida – se oferece para comprar o lugar. Tudo poderia seguir como era antes, e Carmy seguiria distante de tudo e todos. Mas como seguir nessa aparente zona de conforto, quando tudo que ela lhe oferece é desânimo, depressão e angústia?
É por isso, pela falta que sente por tudo que deixou estacionado por tanto tempo e pela ânsia em resgatar essa convivência, numa busca desesperada pelo irmão que não mais está ali, que Carmy decide jogar tudo para o alto e assume para si as pendências que agora estão vagas. Aceita ser o novo chef do The Beef, assim como assume também a família que ali se encontra – e daquele lugar depende. É curioso perceber como a rotina claustrofóbica e demolidora que enfrentava diariamente na maior cidade do mundo o acompanha nessa volta para casa. Portanto, era algo do ambiente, ou que já pertence a ele? Quando chega naquela espelunca que mal se sabe como segue de pé, se apresenta provocando espanto não só naqueles que conhecem a sua trajetória – e os feitos recentes que alcançou – como também o histórico familiar de silêncios e dilemas não ditos. Carmy tem que aprender a lidar com o primo, Richie, que também é sócio e, por isso, não está acostumado a que lhe digam o que fazer, e com as personalidades de cada um dos funcionários: da chef que contrata para impor algum tipo de ordem ao cozinheiro que sonha em virar confeiteiro, da veterana das panelas que não aceita ser ensinada por alguém muito mais jovem ao faz-tudo que é chamado para todo tipo de emergência, menos para aquelas que mais lhe apetecem: as culinárias.
É nesse mosaico de tipos em que reside um dos maiores méritos de O Urso. Os personagens são tão bem construídos que, em pouco tempo – a primeira temporada tem apenas oito episódios de meia hora cada, às vezes até menos – o espectador passará a vê-los como velhos conhecidos, identificando suas vontades e receios, temendo por suas frustrações e vibrando a cada nova conquista. Tinha tudo para ser claustrofóbico – e, em mais de uma ocasião, de fato é, revelando uma impressionante condução de câmera por um ambiente tão fechado quanto uma cozinha profissional – mas há também espaços para respiro. Bons exemplos são os episódios que fogem desse esquema, como o que investiga o passado de Carmy ou aquele no qual ele e Richie são chamados para atender em uma festa infantil como parte da dívida que os assombra. Ou mesmo passagens mais singelas, como o prólogo que apresenta, enfim, o quão sedutora podia ser a presença de Mike, ou mesmo cada um dos instantes em que os funcionários, de modo alternado, se refugiam no terreno dos fundos para afogarem suas mágoas, esconderem seus despreparos frente os desafios que vão se acumulando ou mesmo para fumar um cigarro em paz. Estes servem da mesma forma ao espectador, que podem se aproximar sem atropelo de cada uma dessas figuras nesses momentos de aparente baixa guarda, o que os torna mais humanos e, assim, universais.
A escolha de Jeremy Allen White para o papel de Carmy é, a despeito de muitos outros méritos, o maior dos acertos do elenco. O seu olhar volta e meia se mostra perdido, como que à procura de um foco, e essa também é a busca do personagem, jogado em meio a um furacão tanto por uma questão de honra, mas também de talento – ele não estaria ali se soubesse não ser capaz. Foi somente por ter partido que tem ciência da dificuldade de voltar e, mais do que isso, do que precisará fazer para mais uma vez ocupar aquele vazio que lhe foi imposto. De porte atlético, mas por vezes quase que encolhido em si mesmo, White é uma pérola à espera de ser encontrada, uma fera enjaulada em constante luta para fazer valer o que acredita, a todo instante se corrigindo quando percebe ter ultrapassado os limites, mas também disposto a rugir no mesmo volume em que é atacado. É um vulcão prestes a entrar em erupção, a calmaria antes de uma tempestade pronta para se manifestar, mas que entende sua necessidade de se manter à distância caso não seja provocado. É pela imprevisibilidade de suas reações, tão assustadoras quanto profundas – nenhuma é gratuita, menos ainda irrelevante, pois tudo ali possui consequência – que as atenções se desdobram. Tanto nele, quanto no programa.
Enfim, O Urso chegará para tomar conta daquilo que parece abandonado, mas pelo qual muitos estão dispostos a irem para o campo de batalha em sua defesa. A primeira temporada é não mais do que um amuse-bouche, um aperitivo bem servido e capaz de deixar qualquer um salivando, mas que dificilmente conseguirá saciar os estímulos despertados até o seu término. De difícil entrada – os primeiros episódios são particularmente complicados, seja pelo ritmo intenso que imprime, refletido tanto na montagem quanto na fotografia, mas também pela verborragia transbordante dos seus diálogos, capazes de provocar tonturas nos desavisados – mas imensamente recompensador aos que superarem essa turbulência inicial, eis aqui uma proposta que parte do básico – dois ou três cenários, poucos personagens de expressão, mas vivos em seus dilemas e aspirações, impressos através de um texto rico e crescente – para transformar percepções, independente de qual lado da tela se esteja. É só um começo, como já foi dito. Mas um passo firme e conciso, que tem tudo para se confirmar em uma longa e próspera jornada.
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