Crítica


5

Leitores


1 voto 8

Sinopse

Oito habilidosos ladrões se trancam na Casa da Moeda da Espanha com o ambicioso plano de realizar o maior roubo da história e levar com eles mais de 2 bilhões de euros. Para isso, a gangue precisa lidar com as dezenas de pessoas que manteve como refém, além dos agentes da força de elite da polícia, que farão de tudo para que a investida dos criminosos fracasse.

Crítica

La Casa de Papel poderia muito bem ter sido escrita por Dan Brown, autor de O Código Da Vinci (2006) e Anjos e Demônios  (2009). Assim como nos livros do escritor estadunidense, acompanhamos aqui uma série de eventos curtos e tensos que deixam o espectador (ou leitor) curioso para saber o que acontece em seguida – aquela personagem foi executada mesmo? A polícia vai encontrar o esconderijo do ladrão na próxima cena? O que será que Raquel descobriu numa gravação? Os ganchos não existem apenas ao final de cada episódio, mas praticamente a cada mudança de cena – o que remete bastante aos capítulos minúsculos de Brown e sua mania de fechá-los com uma incógnita.

20180430 01 la casa de papel t01 papo de cinema

Entretanto, esta tática acarreta numa demanda absurda de criatividade para gerar situações que continuem se superando ou mantendo o nível de choque causado pela cena anterior – e ninguém há de acusar a série de não ser inventiva. Mas é aí que La Casa de Papel começa a partilhar também de um dos principais problemas das narrativas de Dan Brown: a implausibilidade. Não que “ser plausível” seja um pré-requisito indispensável a todas as obras, mas o absurdo simplesmente não casa muito bem com tom de thriller policial estabelecido pela linguagem da série – a fotografia escura, a trilha pesada e os próprios ganchos que, para funcionar, exigem que o espectador leve tudo aquilo muito a sério.

Tarefa que vai se tornando exponencialmente mais difícil. A trama gira em torno desse assalto à Casa da Moeda espanhola, em Madri, onde a quadrilha mantém mais de 60 reféns enquanto usa o maquinário para fabricar o próprio dinheiro. O plano todo é orquestrado por um homem que se alcunha Professor (Álvaro Morte), líder de uma gangue que ainda inclui o maldoso Berlim (Pedro Alonso), o ingênuo Rio (Miguel Herrán) e Tóquio (Úrsula Corberó), que, apesar de limitada pela situação de sítio do grupo, é também inexplicavelmente (até agora) a narradora onisciente da narrativa. O atrativo principal, portanto, é convertido na expectativa de descobrir qual a jogada “genial” que os Dalís (os assaltantes usam máscaras de Salvador Dalí) planejaram para antecipar cada movimento da polícia e dos negociadores.

Aí entra a figura central do Professor, arquiteto da p*rra toda, um Blofeld dos assaltos, um Lex Luthor dos sequestros. Ou essa é a ideia que La Casa de Papel quer que o espectador compre, uma vez que, apesar de conseguir antecipar com precisão cada passo dos negociadores, o chefe do grupo volta e meia depende da pura sorte para que seus estratagemas funcionem – ufa, ainda bem que aqueles policiais não o viram entrar na viatura, e que o cachorro do ferro velho não o dilacerou, e que o confundiram com um mendigo, e que a caixa de mensagens de Raquel (Itziar Ituño) ficou lotada e por aí vai. Mas tudo bem, o seriado não nega esse viés puxado da teledramaturgia, com situações exageradas, dramáticas, recheadas por atuações sempre no modo overacting.

20180430 03 la casa de papel t01 papo de cinema

Tem até certo charme quando Berlim (de longe o mais canastrão e, ainda assim, o mais interessante dos personagens) começa a recitar outro de seus discursos preparados enquanto persegue uma vítima, ou quando Tóquio desata a explicar bem mastigadinho mais um plano do Professor. Sem contar as típicas incoerências internas que se acumulam sobre uma narrativa que pretende ser simultaneamente inventiva a todo momento e imutável do ponto de vista de evolução das relações entre os personagens – o que acontece muito nas novelas para que, mesmo quem perdeu um punhado de capítulos possa continuar entendendo a história de qualquer outro ponto adiante. Daí numa hora estão se apontando armas e se ameaçando, confabulando execuções e trairagens, mas, no outro, se abraçam e cantam juntos como um time de futebol que acabou de ganhar um campeonato.

E de novo, isso por si só não é um problema. Ora, Lost (2004-2010) é uma obra-prima narrativa e, na sua própria época, seguia diretrizes parecidas com as da teledramaturgia também – mas o tom e a construção eram bem mais rigorosos, o que no geral é o maior pecado de La Casa de Papel. Não por falta de tentativa, é preciso conceder o mérito do esforço, mas Álex Pina, o criador da série, parece entender mais sobre o que deveria fazer do que como fazer. Por exemplo, cada personagem ganha, de fato, um momento para se abrir e falar de si mesmo, o que é um bom recurso para desenvolvê-los, a não ser que você encaixe esses monólogos, de forma burocrática, em qualquer espaço, sem criar a atmosfera do antes e nem do depois – recorrentemente, um desses desabafos é precedido e sequenciado por uma cena mais barulhenta de ação. Mas o que parece importar a Pina é ir na sua planilha do Excel, achar a linha Personagem Tal e marcar “check” na coluna “desenvolvimento”. 

Outro exemplo do quão raso é o esforço narrativo da série está no modo como constantemente desperdiça boas pautas. Porque, apesar de bater várias vezes na tecla da representação feminina e da disputa desleal de poderes entre homens e mulheres, o roteiro dá a impressão de que insere esses tópicos para angariar likes. Do mesmo modo, a orientação sexual de um dos assaltantes é revelada de forma oportuna, quase como se apenas isso fosse suficiente para classificar a obra na categoria LGBTQ.

20180430 02 la casa de papel t01 papo de cinema

Além disso, é preciso ressaltar que esta primeira temporada tinha menos episódios e que estes tinham uma duração bem maior. Foi a Netflix que remontou os capítulos e os dividiu em maior número e com uma duração individual menor quando adquiriu os direitos de distribuição – uma conduta covarde do ponto de vista artístico, já que claramente visa atender a demanda da plataforma, cujo modelo de negócios depende do usuário passar o maior tempo possível conectado, o que seria desencorajado por durações muito longas. O problema para La Casa de Papel é que aparentemente esse picoteamento não fez diferença alguma – o que só comprova que o roteiro foi pensado como um entretenimento vazio e novelesco, e não como narrativa artística e cinemática, já que há pontos de entrada e saída de atenção a todo instante.

Corta um episódio de Lost no meio pra ver se funciona…

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
é formado em Produção Audiovisual pela PUCRS, é crítico e comentarista de cinema - e eventualmente escritor, no blog “Classe de Cinema” (classedecinema.blogspot.com.br). Fascinado por História e consumidor voraz de literatura (incluindo HQ’s!), jornalismo, filmes, seriados e arte em geral.
avatar

Últimos artigos deYuri Correa (Ver Tudo)

Grade crítica