Crítica


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Sinopse

Mesmo sendo fortes e decididas, Issa e Molly precisam enfrentar muitos desafios. Essas duas jovens negras compartilham um cotidiano repleto de problemas e experiências desagradáveis por conta do preconceito.

Crítica

Issa Dee, personagem criada e interpretada por Issa Rae, é um retrato bastante preciso da mulher negra independente norte-americana. Ao longo das três temporadas iniciais de Insecure, a protagonista se dividiu em uma frente tripla: relacionamentos amorosos, a convivência com as amigas mais próximas e sua estruturação profissional. Entre 2016 e 2018 (houve um hiato de mais de doze meses entre o terceiro e o quarto ano), ela foi de uma situação aparentemente estável, porém que escondia diversas rachaduras disfarçadas com muito esforço, para um momento de desconstrução total. Ela perdeu o namorado de anos, se distanciou de sua maior confidente e abandonou o antigo emprego. Agora, mais do que tudo, precisa se reencontrar. E está fazendo isso sem medo, de braços abertos, disposta a dar tropeços, mas também a se levantar e seguir em frente sempre que necessário. Talvez esse seja o seu maior exemplo. Porém, ao longo desta quarta leva de episódios, a impressão que fica ao final é a de um recomeço, não necessariamente em um lugar novo, mas, acima de tudo, diferente de como estava antes.

Um bom ponto de partida são os nomes dados a cada sequência de capítulos. Na estreia, eram todos “as fuck”. Ou seja, radical, intenso, com muita entrega. Issa era insegura, bagunçada, sexy e culpada, lidando de forma desgarrada com cada um desses problemas. Já no seguinte, as coisas ficaram “hella”, ou seja, bastante, abundante. Eram questões que se somavam, Los Angeles – a cidade onde a história se passa – é vivida de forma profunda, e até suas novas perspectivas eram abordadas sem ressalvas. Tamanho mergulho gerou algo “-like”, quer dizer, mais ou menos próximo do ideal – mas ainda distante do imaginado. Era mais ou menos familiar, mais ou menos melhor, mais ou menos pronto. Issa se viu tendo que lidar com um processo de adaptação, de descobrir nela mesma os meios para sobreviver, sem se apoiar na sua rede de segurança habitual. Isso gerou um amadurecimento forçado, em mais de um aspecto. É por isso, portanto, que dessa vez o enfoque estava no “lowkey”, no registro mais sutil, discreto e delicado. Ela se mostra bem consigo, grata pelo que tem conseguido, tentando corrigir erros do passado e feliz pelas novas oportunidades. O curioso, no entanto, é que no final sinta-se “lowkey lost”, ou seja, levemente perdida com o que fazer de agora em diante.

Quando a vimos pela última vez, Issa havia recém se associado com Condola (Christina Elmore, de Fruitvale Station: A Última Parada, 2013), uma produtora de eventos – sem saber, no entanto, que a agora parceira era também a nova namorada do seu ex, Lawrence (Jay Ellis). A revelação desses laços estremece a dinâmica entre elas, mas nada que prejudique o projeto de ambas: uma festa de bairro, com a comunhão de comerciantes e artistas locais em prol da comunidade. Essa é a primeira empreitada de Issa nessa sua atividade por muito sonhada, e o resultado, ainda que sua realização tenha sido tensa, é muito bem sucedido. Ela está em alta, mas o preço a ser pago também não foi barato. Afinal, nesse meio tempo, não só acabou se afastando de Molly (Yvonne Orji, um dos pilares do programa), como também abriu mão dos sentimentos que ainda nutria por Lawrence. Quer dizer, isso, ao menos, era o que imaginava.

É importante perceber que a amizade de Issa e Molly é mais intensa do que a de Carrie (Sarah Jessica Parker) com qualquer uma das suas amigas, Samantha (Kim Cattrall), Charlotte (Kristin Davis) ou Miranda (Cynthia Nixon), em Sex and the City (1998-2004). A comparação entre os dois seriados, aliás, está longe de ser gratuita: Insecure é praticamente uma nova versão do show anterior, porém trocando Nova Iorque por LA e substituindo as protagonistas brancas por mulheres negras. E não só isso: se antes havia uma divisão mais equilibrada entre as quatro, dessa vez a narrativa está centrada nestas duas principais, deixando Tiffany (Amanda Seales) e Kelli (Natasha Rothwell, também co-roteirista) num segundo plano. Issa e Molly estão separadas, cada uma tem as suas razões, e nenhuma delas parece disposta a ceder para que essas rusgas sejam superadas. Mas, no final das contas, será em uma sessão de análise que uma delas ouvirá aquilo que resume bem o sentimento com o qual ambas estão lidando: será que uma convivência e uma intimidade construídas ao longo de tantos anos merecem, numa situação como essa, o comprometimento de olhar para o quadro maior, deixando de lado esses desentendimentos momentâneos? A lição que tiram disso age na compreensão de ambas, e funciona também no lado de cá da telinha.

Enquanto esse atrito vai se desenrolando, é aberta a possibilidade para a audiência conhecer melhor as duas: não por acaso, este quarto ano oferece, pela primeira vez, um episódio inteiro centrado apenas em Molly, no qual Issa nem sequer chega a aparecer. Se alguém chegou a pensar que esse estremecimento poderia significar uma saída da coadjuvante do programa, os realizadores foram sábios em driblar essa perspectiva, estabelecendo uma nova narrativa que tem tudo a se aprofundar no futuro (a série já está renovada para uma quinta temporada). Inclusive, Tiffany também é privilegiada em um dos capítulos com um drama bastante pessoal. Assim, com todas as garotas ganhando maior destaque, a protagonista tem mais tempo também para se dedicar àquilo que lhe falta nesta tríade pessoal: um envolvimento romântico. Se Daniel (Y’lan Noel) é carta fora do baralho, e Nathan (Kendrick Sampson) até está por perto, mas sem alcançar o momento de perdão pelo qual ansiava, restam duas possibilidades: um novo amor, ou o resgate de uma antiga paixão. E qual será a escolha da vez? Por mais que houvesse uma grande torcida, é quase impossível evitar o gosto de repetição nesse caso.

Ainda que tenha sido criado por uma mulher em parceria com um homem (Larry Wilmore, vencedor do Emmy por The Bernie Mac Show, 2002), Insecure é uma série absolutamente feminina. Mas, mais do que isso, é também contemporânea, moderna, que não tem pena das suas personagens, ainda que esteja longe de demonstrar um olhar sádico sobre elas. Há sofrimento, portanto, mas também compaixão. Porém, mais do que aquilo que acontece com delas – se o trabalho está ou não dando certo, se o namoro irá ou não vingar, se o flerte é ou não real, se tal erro será ou não perdoado – são suas personalidades que, de fato, justificam um interesse mais um ano renovado. Issa é desajeitada, desbocada, egoísta. Molly é radical, audaciosa, orgulhosa. Tiffany é frívola, vaidosa, sexy. Kelly é decidida, selvagem, implicante. Todas, no entanto, possuem também suas inseguranças. Isso as transporta a um lugar além da figura unilateral. As tornam reais. E no final das contas, essa é a diferença que importa.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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