Atualmente, o cenário audiovisual é alterado com velocidade sem precedentes. Especialmente o surgimento e a rápida ascensão ao protagonismo dos serviços de streaming impuseram uma série de dilemas aos membros dessa cadeia. Tendo em vista as recentes greves dos sindicatos de intérpretes e roteiristas da América do Norte, paralisações que duraram mais de 100 dias e escancararam a defasagem de acordos que não contemplavam questões como pagamentos residuais e a atuação da inteligência artificial, nos resta perguntar: e no Brasil, mercado inserido dentro de um contexto ainda em desenvolvimento, estamos preparados para encarar esses novos desafios, inclusive no que diz respeito à esfera jurídica? Pensando nisso, quais as estratégias e ferramentas que os criadores brasileiros têm para lidar com esses novos agentes de mercado (as plataformas digitais, sobretudo) e com as inteligências artificiais ensaiando uma entrada fundamental nesse ambiente de produção? A atual batalha por um marco regulatório da existência do streaming no Brasil é essencial para ajustar tais questões e desafios? Integrante do BrLab 2023, a mesa Direitos de Autores: A importância da união dos criadores do Audiovisual contou com as presenças de Fernando Coimbra, Thiago Dottori e Paula Vergueiro.
Advogada atuante do segmento do audiovisual, Paula começou os trabalhos fazendo uma introdução em que provocou os participantes sobre a criação audiovisual: “Como advogada, para responder sobre isso da criação, a primeira coisa que faria era consultar a lei. E a lei é muito clara para afirmar quem é o autor da obra audiovisual (…) no direito autoral, ela não é uma obra coletiva, pois conseguimos identificar as contribuições criativas (…) a lei diz que os autores são os roteiristas (…) além da pessoa responsável pela direção”. Thiago disse que o primeiro passo para essa definição é pensar como se deu o processo de transformar algo da natureza das ideias, meio etéreo, em matéria passível de ser compartilhada, no sentido de que outras pessoas a podem perceber. “Entre o processo daquilo que está na cabeça para a colocação no papel é que acontece a criação. Depois, do ponto de vista da criação, há a direção que cria em cima do que está escrito para, de fato, ganhar a forma final audiovisual”. Fernando Coimbra, diretor experiente (ele comandou, entre outros, O Lobo Atrás da Porta, 2013), começou a sua fala enfatizando a importância do coletivo no processo audiovisual, que sempre tem em mente essa natureza colaborativa no processo de realizar um filme. Ele retomou um comentário de Thiago sobre certo apagamento humano nos lançamentos atuais, dizendo que achou curioso quando lançou Castelo de Areia (2017) pela Netflix que o cartaz adornando o ambiente da pré-estreia sequer continha o nome do elenco, enfatizando bastante a marca da gigante do streaming.
“Esses caras não dão ponto sem nó (…) fico pensando se essa ausência de créditos não é uma forma de ir cerceando direitos, essas coisas que eles não querem pagar residuais, mil assuntos que estão sendo discutidos (…) essa cultura de não creditar e enfatizar a marca acho que vai ao encontro disso se transformar o criativo em prestador de serviço”, disse Fernando. “Realmente, isso parece uma diluição de autoria, um apagamento (…) gosto de ampliar um pouco para falar dos atores e das atrizes que criam personagens, que são chamados de detentores autorais de direitos conexos, mas de certa maneira são criadores”, completou Paula que passou a palavra a Thiago, destacando a sua atuação associativa para introduzir o assunto das negociações com os grandes players de mercado. “O mercado do audiovisual cresceu muito, mas houve uma diminuição constante de direitos. Assinei contratos melhores quando o mercado era menor. A tecnologia é sempre muito mais rápida do que a capacidade legislativa dos países. Num país em crise política, com mudanças de governo, no qual enfrentamos uma instabilidade, no mínimo, desde 2013, a regulamentação de mercado demora para acontecer (…) a única saída possível é a negociação coletiva. É preciso capacidade associativa para identificar problemas em comum”.
“Durante muito tempo não fiz parte de nenhuma associação ou sindicato, até porque realizava tudo meio na raça, trabalho hercúleo para fazer curtas e depois o primeiro longa (…) uma vez indo trabalhar nos Estados Unidos, me vi meio obrigado a fazer parte do DGA, o Directors Guild of América, e vi realmente a diferença que faz essa lógica associativa para recebimentos ou proteções contra uma série de infrações. Fui entendendo a diferença entre os mercados (…) na minha modesta opinião, acho complicado no Brasil ter o Sindicine representando todo mundo, pois cada área tem demandas específicas (…) quando fui fazer a primeira negociação com a Netflix já no Brasil percebi o buraco que existia (…) politicamente, tivemos o começo de uma desidratação da Ancine no governo Michel Temer, depois os anos de Jair Bolsonaro, e ficamos meio reféns dos streamings para poder trabalhar, então virou meio terra de ninguém na maneira de eles agirem. Dito isso, é fundamental ter associações e sindicatos para bater de frente”, testemunhou Fernando, escancarando problemas que tangem a essa relação com os streamings. Paula pegou o gancho e disse que é complicado definir no Brasil uma indústria do audiovisual, inclusive porque nos falta essa organização sindical e associativa existente nos Estados Unidos que garante os direitos às diversas áreas dessa cadeia enorme que têm suas próprias demandas.
Na sequência, os participantes da mesa conversaram sobre os diferentes modelos de contratação de trabalhadores do audiovisual, expandindo a conversa a respeito das diferenças entre os mercados brasileiro e norte-americano quanto às negociações de direitos autorais – feitas todas a ressalvas de que estamos falando de realidades histórica e economicamente muito distintas, algo que permite nos Estados Unidos a existência de uma máquina burocrática muito rígida. Thiago disse que no Brasil essa ideia de indústria criativa existe apenas há cerca de dez anos e que alguns desafios das classes dela integrantes também são percebidos nas demais relações de trabalho, especialmente num mundo que tem permitido o derretimento dos direitos trabalhistas, algo representado, por exemplo, pela chamada uberização, essa lógica de relação de trabalho em que os direitos estão sendo cada vez mais retirados em prol de uma falsa sensação de liberdade laboral. Fernando evolui nesse assunto falando especificamente das diferenças entre desenvolver projetos autorais e ser contratado como prestador de serviço às empresas. Ele afirmou que uma das alternativas para garantir participação em eventuais sucessos comerciais é entrar nas produções como produtor associado, tornando-se sócio delas. “O que nós buscamos com esse direito de remuneração é que os criadores participem do destino econômico das obras. Se a obra der lucro, que dê lucro para todo mundo”, complementou Paula.
Ao abrir a discussão para perguntas, veio da plateia presencial a questão das diferenças entre ficção e documentário dentro dessa lógica dos direitos autorais. “Existe essa diferença (…) há outra escala de dinheiro. Quando é TV aberta, dificilmente documentário ocupa horário nobre, então a remuneração naturalmente é maior à ficção. Mas no streaming os documentários estão dominando, então é fundamental que as remunerações sejam as mesmas”, respondeu Thiago. “Em termos jurídicos e de direito, documentário tem roteiristas e diretores, alguns são ficcionados com atores (…) por exemplo, o true crime está muito em voga. Em termos de direitos também temos de pensar na animação, área em que o animador também é considerado autor”, completou Paula. Desenvolvendo um pouco mais alguns tópicos antes discutidos e ressaltados, terminou a quinta mesa temática do BrPlot, participante do BrLab 2023, intitulada Direitos de Autores: a importância da união dos criadores do Audiovisual, que aconteceu na quarta-feira, 22, e que contou com Fernando Coimbra e Thiago Dottori, e a mediação de Paula Vergueiro.
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