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Sinopse

Após a crise financeira de 2008, Ricky e sua família se encontram em situação financeira precária. Por isso, decide adquirir uma pequena van, na intenção de trabalhar com entregas, enquanto sua esposa luta para manter a profissão de cuidadora. No entanto, o trabalho informal não traz a recompensa prometida e, aos poucos, os membros da família passam a ser jogados uns contra os outros.

Crítica

Ao longo de mais de cinco décadas de cinema, Ken Loach jamais escondeu seu posicionamento político. Em muitos casos, fez de seus filmes verdadeiros baluartes em defesa da classe trabalhadora britânica, sempre pensando no fator humano em detrimento do capital, denunciando abusos constantes no sempre difícil (e complexo) relacionamento entre Estado e cidadão. Em Você Não Estava Aqui, o diretor mais uma vez aponta a câmera para tais contrastes, mas, desta vez, com um particular interesse com que o espectador perceba que o mundo ali retratado é o que está à sua volta, independente do país em que esteja. Este, talvez, seja o filme mais universal de sua carreira.

Isto porque Loach volta seu olhar para uma peculiaridade derivada das mudanças nas relações de trabalho, a partir da ascensão dos aplicativos móveis que permitem que se ganhe dinheiro através deles - a apelidada "uberização". A história acompanha um homem que, em busca do sonho da vida digna sem patrões, decide trabalhar como autônomo em uma empresa de entregas. Não há direitos trabalhistas envolvidos, apenas uma rota que precisa ser seguida à risca dia após dia, dentro do tempo pré-determinado e regulado em tempo real. Qualquer deslize, independente do motivo, é penalizado - no bolso, especialmente.

O que Loach deseja aqui ressaltar é o quanto o sonho do negócio próprio se torna uma armadilha graças às configurações das relações de trabalho existentes neste mundo contemporâneo, no qual o capital muitas vezes leva vantagem. A via-crúcis vivenciada por Ricky Turner (Kris Hitchen, de um desespero crescente tocante) pode ser facilmente reconhecida mundo afora, em uma conjuntura que reúne orgulho, necessidade e escravidão. Afinal de contas, como interromper a espiral de aprisionamento que o sistema tanto deseja, para que possa lucrar (ainda mais) em cima de quem tanto se dedica, dia após dia?

Loach, é claro, não deseja abordar apenas o ambiente de trabalho e, com isso, expande os reflexos dele decorridos para dentro de casa. Não por acaso, o título do filme é tanto a mensagem que se deixa à porta quando não se encontra alguém em casa mas, também, um indicativo da ausência cada vez mais constante dos pais, devido à necessidade em fazer horas extras para, apenas, pagar as contas do cotidiano. Tal cultura de subsistência traz reflexos não só no relacionamento interpessoal mas, também, na própria criação dos filhos, sempre distantes de suas referências mais diretas. Isto, também, tem um custo alto.

Para dar voz à sua saga moderna, Loach conta com um elenco afiado cujo mérito maior é transparecer a sensação de ser gente como a gente. Se o já citado Hitchen e Debbie Honeywood emocionam pelo desalento incontido em meio às dificuldades crescentes, por vezes perdendo absolutamente o controle, o adolescente Rhys Stone também se destaca pela típica empáfia desafiadora da juventude que esconde as dores emocionais, por maior que elas sejam. Como válvula de escape, o diretor insere breves pílulas bem-humoradas acerca de outra de suas paixões: o futebol. Também não por acaso é a citação ao "rei Eric", referência escancarada ao ídolo Eric Cantona, que até filme já fez com o diretor: À Procura de Eric (2009).

Duro e doloroso, Você Não Estava Aqui estimula reflexões ao término da sessão. Vale também chamar a atenção para a forma como Loach encerra este filme-denúncia, com um fade-out seco que deixa um inevitável mal estar - nem tanto por causa do filme, mas pela constatação do quão atual ele é.

Filme visto no Festival do Rio, em dezembro de 2019.

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Jornalista e crítico de cinema. Fundador e editor-chefe do AdoroCinema por 19 anos, integrante da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCRJ (Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro), autor de textos nos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros", "Documentário Brasileiro - 100 Filmes Essenciais", "Animação Brasileira - 100 Filmes Essenciais" e "Curta Brasileiro - 100 Filmes Essenciais". Situado em Lisboa, é editor em Portugal do Papo de Cinema.
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