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Sinopse

A chilena Carolina faz seu filme de estreia como forma de exorcizar os traumas de ter sido sexualmente abusada.

Crítica

É curioso pois, no cinema, é possível criar a ilusão de se ter um melhor vislumbre da realidade à noite, no meio da escuridão e da penumbra, do que em pleno dia, com sol a pino e tudo mais. E é bastante simples de compreender: o excesso de luz cega, distorce e distrai, criando complicações que irão prejudicar a leitura dos eventos e elementos próximos. Da mesma forma, quando a luminosidade se torna rarefeita, os olhos se apuram para melhor enxergarem, como animais buscando proteção e prontos para a caça que se anuncia ao mínimo sinal de alerta. É nessa condição que a diretora e roteirista chilena Carolina Moscoso organiza Visão Noturna, seu trabalho de estreia no formato, resultado de um processo tão doloroso quanto vital para a sua própria recuperação – e alcance de uma maturidade cinematográfica rara de se encontrar em alguém tão iniciante.

Que fique claro, portanto, que Moscoso pode ser nova, mas não uma novata. Com longa carreira nas mais diversas áreas, da montagem à fotografia, tendo experimentado também no vídeo e na animação, ela parece ter se encontrado ao deixar essas distrações de lado e, enfim, decidido olhar para si mesma. Pois é o que faz aqui: buscar no próprio passado uma ferida ainda viva, latente e incômoda, que precisava ser encarada de frente para, quem sabe, encontrar algum tipo de redenção. Não justiça, pois isso parece ser mais do que uma mera questão entre os homens, mas quem sabe um reparo que a permitisse ficar bem consigo mesma, livre do peso que insistia em se alojar sobre seus ombros e a impedia de dar com mais leveza os tão necessários passos seguintes.

Oito anos atrás, quando ainda era uma estudante de Cinema, durante uma viagem de final de semana com os amigos, Carolina foi violentada por um rapaz que havia recém conhecido e acreditava estar tão interessada nela quanto um flerte de ocasião pode permitir. Eram jovens, bebiam e se divertiam, e um entrosamento parecia natural. Pois bastou se afastarem um pouco dos demais para que o cordeiro se revelasse lobo, partindo para um ataque que a deixou marcada pelos anos a seguir. O que passou, no entanto, além de ser algo íntimo e pessoal, se torna exemplo de uma dolorosa jornada de inúmeras mulheres a partir do momento em que decide fazer o que é direito. Recuperada, foi à polícia prestar queixa. E a partir desse momento, de vítima ela praticamente se torna ré da própria denúncia.

Assim como visto recentemente na série norte-americana Inacreditável (2019), ao invés de ter início um processo de recuperação, a cineasta passou por um agravamento das feridas psicológicas que a traumatizavam pelo comportamento absolutamente inadequado dos policiais e de qualquer outra autoridade envolvida no caso, além de um labirinto caótico de burocracias e contradições. Visão Noturna, portanto, é formado pelo registro dessas conversas, com gravações telefônicas, reunião de mensagens e exibição de documentos que evidenciam o despreparo daqueles que deveriam servir, mas parecem mais ocupados em apenas acusar. Ao invés de encontrar amparo e ajuda, a menina se viu diante de inúmeros dedos que apontavam apenas na sua direção. Um cenário desmotivador, que terminou por perpetrar mais uma injustiça.

Assim como as marcas deixadas por uma noite de quase uma década atrás permanecem vívidas na memória da jovem realizadora, também a necessidade de se encerrar esse ciclo se verifica quando retorna ao mesmo lugar, tanto tempo depois, e ainda se percebe incômoda com as palavras que precisa usar para descrever o que ali lhe ocorreu. Cada sobrevivente de uma agressão tem seu próprio período de recuperação, e não será num estalar de dedos que o feito será desfeito, e que a dor cessará de se manifestar. O importante, no entanto, é que os passos rumo à direção certa, enfim, foram dados. Visão Noturna mostra como, mesmo diante das piores condições, sempre haverá algo a ser feito, uma medida a ser tomada e um exemplo a ser dado ou seguido. Pois como diz o ditado, é quando a noite fica mais escura que o amanhã começa a se anunciar.

Filme visto online no 9º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2020.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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Robledo Milani
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Chico Fireman
5
MÉDIA
6.5

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