Crítica

Verter ao cinema Vinhas da Ira, livro emblemático de John Steinbeck, é tarefa compatível só a alguém do calibre de John Ford, provavelmente o maior inventarista em película da história norte-americana. Ele aborda a Grande Depressão (iniciada em 1929) através de uma família pastoril obrigada à itinerância quando despejada. Pessoas da terra – gente acostumada a nascer, criar-se e morrer no mesmo chão – os Joad embarcam num veículo caindo aos pedaços em busca de sobrevivência. E o primogênito, solto em condicional, ressurge para guiar os seus, enquanto lida com um sistema teimoso em achatar aspirações e tipificar. Acusado sazonalmente de patriotismo excessivo, de ser afeito a hagiografias, John Ford valeu-se em 1940 dessa exasperante passagem estadunidense para dar rosto e voz aos sobrinhos desamparados do Tio Sam.

Consecutivos dramas, dos Joan e observados por eles, formam a espinha dorsal do roteiro adaptado por Nunnally Johnson e orquestrado na tela por Ford, um dos maiores diretores do cinema (Ingmar Bergman o sustentava quão maior). Em Vinhas da Ira, ele parece capturar a essência literária, utilizando-a como motriz na articulação cinematográfica da fábula. Personagens de riqueza multifacetada, encenação clássica (no que o adjetivo tem de mais positivo) e o tom humanista, vez ou outra guia da obra fordiana, fazem do objeto desta análise um clássico atemporal. Há quem defenda interessante ponte entre Vinhas da Ira (livro e filme) e o Neo-Realismo Italiano, movimento cultural surgido na “Velha Bota” depois da Segunda Guerra Mundial. E alguém duvida, por exemplo, haverem ecos da mãe americana na progenitora de Rocco e seus Irmãos, do italiano Luchino Visconti?

Vinhas da Ira mostra os Estados Unidos da América desmantelando-se, constrói seu piso sobre desilusões não necessariamente comuns às obras financiadas por Hollywood, e acaba por dessacralizar o país, tornando-o mais factível para além das “belezas de exportação”. Emoldurados pela fotografia do grande Gregg Toland (um ano antes de seu vanguardista trabalho em Cidadão Kane), os personagens criados por Steinbeck são testemunhas e vítimas do entorno opressor, sentindo-se alentados apenas enquanto família, como partes indissolúveis da mesma alma. Somente um diretor monumental tal John Ford faria do derivado cinemático tão importante para seu gênero, quanto é o original para a literatura.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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