Crítica


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Sinopse

Depois de fugir de casa com seus dois filhos pequenos, Paco começa a ser perseguido. O trio percorre a França e conhece o perigo, o medo, mas também a mais pura solidariedade daqueles que estão à margem do sistema.

Crítica

Até que ponto ir contra o já pré-estabelecido, o convencional, ou seja, aquilo que é normal apenas porque todos assim o fazem, muitas vezes sem nem mesmo terem o cuidado de se questionarem por que, é também um ato de rebeldia? Afinal, não somos todos livres para agirmos como bem entendermos? Ou essa liberdade só existe dentro de padrões determinados? Tais questionamentos, se podem consumir toda a existência de um homem adulto, encontram ainda maior ressonância ao se depararem entre as dúvidas de um pai e de uma mãe – ou, pior, de um pai contra uma mãe. Pois esse embate, que na teoria pode até parecer retórico, teve efeitos transformadores em cada um dos membros da família Fortin, como bem registrado em Vida Selvagem, drama de Cédric Kahn inspirado em fatos reais.

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Philippe – ou Paco, como prefere ser chamado – é um homem do mato, e não da pedra. “Tudo aqui é redondo, funcional, ao contrário do que existe nas cidades. Foi o homem branco que criou o quadrado, o estático”, chega a afirmar em determinado momento. Para ele há uma sintonia maior conectando tudo e todos, e essa filosofia não reside apenas na teoria – está também na prática, quando decide abandonar uma existência programada para se levar pelas incertezas do acaso. Assim, tendo apenas a roupa do corpo consigo, encontra abrigo em uma comunidade hippie. Lá conhece Carole, e os dois parecem partilhar dos mesmos ideais. Ele assume o filho dela, os dois se casam e, juntos, tem mais duas crianças. Tem-se, portanto, uma família feliz. Até que um levante aconteça.

Carole cansou. Não quer mais saber de barracas, de lama, de intempéries. Quer dar aos filhos um teto, uma escola, um futuro. Entre o casamento e a fuga, não se sabe ao certo como se desenvolveu o relacionamento do casal. O que se tem como fato, no entanto, é que três crianças dessa união surgiram. Tanto é assim que a mais velha – que nem fruto legítimo de Paco é – ao perceber os planos da mãe, tenta abandoná-la, para com o pai por direito permanecer. Mas são pequenos, garotos apenas, e nessa idade a voz dos pais – ou da mãe, em último caso – é que termina por falar mais alto. Paco é rechaçado, seu chão some e de uma hora para outra se vê sem mulher, esposa, companheira, e pra piorar, também sem filhos. Sua família evapora, e sozinho se vê. Após uma batalha de meses, consegue, a muito custo, direito a um ou outro final de semana com os meninos. E assim que uma oportunidade se apresenta, ele mostra ter aprendido o jogo. Chegou sua vez de fugir. E desta vez, não mais tendo a solidão como companhia.

Paco e seus dois filhos menores se escondem no único lugar que conhecem em conjunto: na natureza. Em meio às árvores, aos refúgios improvisados e ao ar livre, se sentem mais juntos do que nunca. E assim permanecem, por onze longos anos. As crianças aprendem a ler e a escrever e sobre as coisas da vida e dos homens de um jeito ou de outro, em aulas caseiras ou pelas experiências do cotidiano. O pai desiste de tudo por eles. Ou teria sido por si próprio, para provar uma posição? A resposta, como se vê, só chega com o tempo. Pois já adolescentes, os dois rapazes precisarão encontrar as respostas por conta própria. Paco é procurado pela polícia há mais de uma década – a mãe deu queixa pelo rapto dos filhos – e tudo que as crianças sabem foi crescer às sombras, longe de maiores exposições e sempre na defesa. Mas um dia chega a vez de dar a cara ao sol. De dizer a que veio. Pois mesmo que tudo que se saiba do mundo é aquilo ao alcance dos olhos, um momento chegará em que aquilo não mais será suficiente.

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Mathieu Kassovitz, como Paco, oferece uma composição detalhada e cuidadosa de um personagem complexo, difícil por ser real – e vivo – e, acima de tudo, longe de ser perfeito. Suas contradições refletem no comportamento dos dois que dele descendem, e as diretrizes de um nem sempre irão encontrar um reflexo sem contornos. Vida Selvagem é um retrato às vezes distante, em algumas passagens isento em demasia, mas nunca frio a ponto de com ele não nos importarmos. Muito disso se deve também à abordagem respeitosa de Kahn – ele também ator e roteirista, e, por isso, conhecedor destes meandros. Pois tem em mãos um drama sem culpados nem inocentes, apenas vítimas em maiores ou menores instâncias. E quando todos parecem estar errados, o mais certo a afirmar é que possuem, inevitavelmente, diferentes razões para justificar suas verdades.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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