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Sinopse

Jeffrey é obrigado a voltar para sua cidade natal após a internação do pai. No caminho de volta do hospital, encontra uma orelha humana, elemento que se torna uma chave de acesso a um insuspeito mundo sombrio incrustado nas entranhas de uma cidadezinha aparentemente pacata.

Crítica

Após os créditos iniciais sobre um fundo de veludo azul, a câmera passeia pela pacata Lumberton, típica cidade pequena dos Estados Unidos. Ao som de Blue Velvet, na voz de Bob Vinton, vemos crianças atravessando pacificamente a rua e o aceno amistoso do bombeiro que transita em slow motion. Tudo parece tranquilo. Um senhor rega seu jardim, como provavelmente faz todos os dias, até que a mangueira fica presa num nó, alusão visual prévia ao ataque vascular que ele tem a seguir. Sua queda faz com que a câmera entre nos pormenores do terreno, onde insetos se debatem com violência. Pronto, numa das mais expressivas aberturas do cinema, David Lynch evidencia o insuspeito. Assim começa Veludo Azul, quiçá a obra-prima do diretor.

Jeffrey (Kyle MacLachlan) volta à cidade para visitar o pai doente. Passando pelo campo que liga sua casa ao hospital, encontra uma orelha humana, seu passaporte para o estranho que se infiltra no cotidiano de Lumberton. Depois de levar o indício à polícia, Jeffrey se envolve com a filha do detetive encarregado da investigação, a bela e recatada Sandy (Laura Dern), fonte de informações privilegiadas que atiçam sua curiosidade. Os dois demonstram uma excitação quase infantil para descobrir algo a respeito do caso, e uma inconsequência ainda mais própria à tenra idade quando decidem (sobretudo ele) saber mais sobre Dorothy Vallens (Isabella Rossellini), cantora de um clube noturno e possível protagonista do caso que resultou na orelha extirpada.

Veludo Azul trata, entre outras coisas, do amadurecimento de Jeffrey, da transição traumática, embora necessária, que o faz perder boa parte da inocência. É como se David Lynch dissesse que é preciso tomar contato com o lado mais sórdido do mundo antes de realmente considerar-se adulto. Uma vez no apartamento de Dorothy, o jovem presencia não apenas a degradação dela, mas também a figura bizarra Frank Booth (Dennis Hopper), maníaco que a tortura com jogos perversos, usando gás alucinógeno. A excitação de Frank passa por ora submeter-se verbalmente a ela (chamando a si próprio de neném), ora colocar-se numa posição de superioridade (intitulando-se de papai). Dorothy descobre Jeffrey incógnito e, de alguma maneira, repete momentaneamente com ele alguns dos abusos aos quais é submetida por Frank, reproduzindo o padrão.

Na medida em que Jeffrey entra nesse submundo, a relação com Sandy passa da simples amizade ao amor, não sem antes transitar pelo desejo. Aliás, sintomático que eles se olhem com lascívia pela primeira vez quando Jeffrey está prestes a entrar no apartamento de Dorothy, situação tão perigosa como excitante. Se Sandy representa uma espécie de mulher idealizada, casta, de bons modos, Dorothy simboliza o oposto, com sua personalidade imprevisível e sexualidade à flor da pele. Não há como possuir as duas, ou melhor, não há como tê-las numa só. Nesse entorno lynchiano, de matizes referentes aos anos 1950 (tão caros ao diretor), onde até mesmo alguns mortos teimam em permanecer de pé, o protagonista descobre que o caminho, seja qual for sua escolha, será inevitavelmente tortuoso.

David Lynch ficou mundialmente famoso com a série Twin Peaks, na qual mostrou o lado oculto de uma cidadezinha sossegada. Mas foi em Veludo Azul que essa vontade de evidenciar o estranho como parte indissociável mesmo (ou principalmente) de um cotidiano interiorano apareceu primeiro. A orelha encontrada por Jeffey no começo do filme é um portal para o lado mais feio do mundo, onde o amor tem dificuldade para impor-se. “É um mundo estranho”, repetem os personagens quando frente ao bizarro subterrâneo que, eles logo entenderão, é intrínseco à perfeição ilusória da superfície.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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