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Sinopse

Em Um Lugar Bem Longe Daqui, depois de ser abandonada, Kya (Daisy Edgar-Jones) se cria sozinha num pântano da Carolina do Norte, nos Estados Unidos. Atraída por dois jovens da cidade, a menina que virou praticamente uma lenda urbana se abre finalmente para um mundo novo e estimulante. No entanto, Kya também enfrenta o pior lado da cidade grande ao se tornar suspeita de assassinato.

Crítica

Há um evidente tom de fábula presente do início ao fim dos acontecimentos de Um Lugar Bem Longe Daqui. É de se lamentar, no entanto, que a diretora Olivia Newman não demonstre coragem de investir de modo mais incisivo nessa perspectiva, uma vez que tudo que é visto em cena é tão sonhador quanto ingênuo, mas, ainda assim, revelando um pálido impulso em colocar os pés no chão e imprimir certa verossimilhança aos eventos enumerados. Se por um lado há folhas dançantes, revoada de pássaros para celebrar um beijo apaixonado e pescadores que passam seu tempo ouvindo Puccini, por outro há também debates envolvendo impostos atrasados, a necessidade de acordar cedo para trabalhar e um inevitável bullying escolar. Nada forte o bastante para mudar o rumo da história, mas, ainda assim, se manifestando enquanto pontos de virada na jornada da protagonista. Afinal, absolutamente tudo conta a seu favor, mesmo quando se vê obrigada a enfrentar as maiores adversidades. O saldo, portanto, inevitavelmente lhe será positivo, tal qual um “...e viveram felizes para sempre”.

Ainda que uma voz em off faça questão em estabelecer diferenças entre “brejo” e “pântano”, como se um fosse a luz e o outro a escuridão, um bom e outro ruim, um escolhido e o outro imposto, o fato é que Kya Clark (Daisy Edgar-Jones, vivendo com todas as cores e típica mocinha de conto-de-fadas, sofrendo desde a tenra idade até alcançar o final feliz que lhe foi destinado) se viu obrigada a crescer longe de tudo e todos. Mesmo fazendo parte de uma casa cheia, a violência e as bebedeiras do pai foram, aos poucos, afastando cada um dos que ali viviam assim que se viam capazes de alçar voo sozinhos. A primeira foi a mãe, cansada de apanhar. Depois as irmãs mais velhas, por fim o irmão. E, assim, sobrou apenas ela, a caçula. Até que nem mais o homem que tanto medo lhe causava permaneceu, abandonando-a à própria sorte. Quase como uma Branca de Neve perdida na floresta, Kya fará do banhado ao seu redor um lugar para chamar de seu, e dali irá retirar as forças e os meios para garantir não apenas sua sobrevivência, mas também as razões para agir com respeito e educação. Mesmo que essa a tenha abandonado, ela segue sendo uma boa moça de família, como dita a moral e os bons costumes.

Tudo isso, obviamente, com a devida segurança, medindo cada passo, observando com cuidado em quem depositar confiança. Isso não foi suficiente, porém, para impedir que o amor – e o sexo – surgissem em sua vida. Primeiro foi a vez de Tate (Taylor John Smith, de Fúria em Alto Mar, 2018, quase tão imaculado quanto ela), o rapaz que conhecia desde criança, que foi criado não muito longe e ao lado de quem sempre se sentiu em paz. Só que os anos passaram para os dois, e se a ela o único desejo era o de ficar onde sempre esteve e não ser incomodada, ao rapaz cabiam outras aspirações, como estudar, viajar, enfim, conhecer o mundo. Um afastamento, ainda que momentâneo, se fez necessário. O que não seria tão grave, não tivesse levado a uma promessa não cumprida. Na vida real, as pessoas aprendem, ainda que aos trancos e barrancos, a superar tais decepções. Porém, quando a fantasia toma conta, uma frustração como essa poderá repercutir para todo o sempre.

É nesse vazio que Chase (Harris Dickinson, quase um clone do seu colega de elenco) irá reivindicar um espaço para chamar de seu. Porém, o cavalheirismo e a doçura de um serão substituídos pela determinação e sentimento de posse do recém-chegado. O clima onírico seguirá dominando o enredo, e ainda que esse se revele com o tempo não ser exatamente o ‘príncipe no cavalo branco’ por ela imaginado, é, também, o personagem que mais se aproxima de uma certa realidade – é falho, pressionado por visões exteriores e fraco em suas determinações. Não chega a ser exatamente uma má pessoa, ainda que possa, em certas conjunções, tomar atitudes condenáveis. Nada que justifique, porém, o que termina por lhe acontecer. Logo na primeira cena dessa adaptação do romance de Delia Owens, o corpo de Chase é encontrado sem vida não muito longe da casa de Kya. Assim que o envolvimento dos dois se torna público, ela passa a ser vista como a principal suspeita do assassinato dele. Caberá ao advogado idealista Tom Milton (David Strathairn, imprimindo uma certa dignidade ao projeto) provar sua inocência. Ou não.

O lado “drama de tribunal” de Um Lugar Bem Longe Daqui é tão desinteressante e previsível que, em mais de um momento, o espectador sequer lembrará dessas sequências, pois à medida em que a trama se desenrola, mais esparsas tais intervenções se revelarão. A necessidade de oferecer uma reviravolta quanto aos fatos sobre os quais se discorrem, por outro lado, se confirma mais uma necessidade estilística voltada a agradar uma parcela do público e menos uma obrigação imposta pela narrativa, pois não só vai contra à personalidade daquela diretamente afetada, como também torna dúbia sua própria condição de vítima. Mas essa, enfim, é uma discussão frente a qual os realizadores – entre eles, a oscarizada Reese Witherspoon, que assina como produtora – não está pronta, e nem disposta, a abraçar. Mais confortável é se mostrar tão singelo quanto o desabrochar de uma flor, simbólico como o nascer do sol ou elegante como o porte dessa garota que, por mais selvagem que se imagine, se mostra uma verdadeira dama, independente das circunstâncias. Eis, portanto, um filme-ilusão, incapaz de se mostrar válido diante dos dissabores de uma existência, mas que ainda assim insiste em preferir o sonho que evapora com o abrir dos olhos.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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