Crítica

O caminho é escuro para os verdadeiros descobridores. 

Você não imagina o que aconteceu, disse um amigo certa vez. Cheguei no prédio para a análise e o edifício tinha o sobrenome dela. Dá para acreditar? Perguntava de maneira insistente. A resposta mais estranha - e por isso nunca dita - é sim e não. Meu amigo havia decidido se analisar para superar uma decepção amorosa. Ao chegar para a primeira sessão, percebeu que o sobrenome da garota era o nome do edifício. Era também o nome do edifício.

O meu amigo é como Larry Gopnik (Michael Stuhlbag), protagonista de Um Homem Sério. Eles são homens sérios, percebemos a fé com a qual encaram a vida ao lidar com situações-limite, em que o acaso - vamos assim chamar, para benefício da dúvida - se transforma em  sinal; o sinal, em pergunta velada; e toda pergunta, em resposta urgente. 

Larry será, então, quem nos levará a investigar se a intimidade dos acontecimentos é fruto do acaso ou do destino. Para isso, o personagem será revestido com uma dupla ocupação: a de Físico e a de judeu - cientista e místico, ambos fascinados pela busca das causas.

Escrito e dirigido pelos irmãos Coen, Um Homem Sério retoma uma criatividade formal que a dupla não mostrava desde Barton Fink: Delírios de Hollywood (1994). Prova disso é o movimento arriscado realizado no início, quando o enredo inicia somente após uma parábola religiosa e uma frase rabínica. O mundo judaico, inevitavelmente presente na filmografia dos Coen, assume um aspecto central, como se, depois de muito tempo, eles voltassem a falar de si para os seus - não necessariamente judeus, mas homens sérios mundo afora.

O início desestabiliza o espectador, assim como a sequência em que a justaposição da edição (em um trabalho excepcional) nos fará cogitar se o filho e Larry não são a mesma pessoa. Estar enganado, confundir-se e ficar em dúvida são recursos que fazem questão de espelhar no espectador o sentimento do protagonista. Se Larry caminha sob o mistério como quem se agarra  aos destroços de um naufrágio, o mesmo acontecerá com o público, que pode até acabar distraído pelo humor negro e a sátira do mundo judaico, mas habitará a incerteza junto a ele.

O fio condutor do mistério está no aluno sul-coreano, que surge no gabinete para pedir revisão da nota dada por Larry. Os argumentos do jovem não são bons, nem mesmo racionais. Embriagado pela lei moral, o professor mantém a reprovação. Então, um envelope com dinheiro surge misteriosamente. Em um mundo sem Deus, o envelope é propina; em um mundo com Deus, pode ser a saída para salvar o irmão autista e pagar os honorários de um divórcio absurdo.

A estratégia dos Coen é fazer com que nos compadeçamos do protagonista. Algo nada difícil, se lembrarmos de uma cena sintomática, em que Larry chega em casa do trabalho e tem de resolver uma série de problemas. A cena é construída com primor técnico. O plano se afasta e o enquadramento aberto mostra a família sufocando Larry com questões, antes mesmo de entrar em casa. Nenhum “oi"' é dito. Nenhum carinho é oferecido. Ao retirar a família como espaço de conforto do protagonista, o filme faz com que o espectador se relacione de modo íntimo e sensível com o personagem.

À medida que caminha, a preocupação da narrativa é nos comunicar o gradual desamparo de Larry. Em meio ao divórcio, menos absurdo do que o trato falsamente maduro e sofisticado de Sy Ableman (Fred Melamed), temos outra grande cena. A tomada vista de cima (algo raro em filmes urbanos como este, mas aqui repetida algumas vezes) enquadra Larry e Sy sentados frente a frente. Quando a ex-esposa Judith (Sari Lennick) chega, escolhe a cadeira vazia ao lado de Sy. O ponto de vista é menos um simulacro da visão divina do que a intenção de acentuar o abandono de Larry. Ninguém está ao seu lado. Assim como Jó, Larry se pergunta: por quê eu? Assim como Larry, nós também estamos sozinhos.

O reconhecimento é o apelo dramático de Um Homem Sério. O trabalho da câmera, gradativamente capturando a expressão abatida do protagonista em planos fechados, da edição, descontraindo a ordem e imputando caos à narrativa, e do som, intensificando a fragilidade de Larry, permitem uma sinceridade e uma proximidade do espectador poucas vezes vista na carreira da dupla. A partir, então, do absurdo que a vida se torna e da impossibilidade de controlar as causas, o protagonista se joga para o território da religião. Ou seja, se a Física não o salvou, quem sabe o judaísmo o faça.

A passagem da razão para a fé, realizada no terceiro ato, é o momento final de uma interpretação existencial que toma a contemplação do mistério como saída radical à afirmação existencialista de Camus, de que sem Deus, a única questão possível é a de realizar ou não suicídio. Entre a razão pessimista de Philip Roth e a contemplação do mistério de Paul Auster, os irmãos Coen certamente escolheriam o segundo.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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