Crítica


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Sinopse

As brincadeiras de Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali levam os amigos a matarem um dia de aula, e terminam com Mônica de braço quebrado após um acidente. Depois desse dia, os pais das crianças preferem que elas não se encontrem mais, para se dedicarem apenas aos estudos. A separação testa a amizade da turma do Bairro do Limoeiro.

Crítica

Depois da aventura, o drama. O primeiro filme em live-action da Turma da Mônica, Laços (2019), apostava nas perseguições e no plano mirabolante para resgatar o cachorro em perigo. Animais perdidos, pessoas em situação de rua, homens do saco e outras figuras externas cedem espaço, desta vez, aos dilemas internos das crianças. Em Lições (2021), os quatro amigos se confrontam aos obstáculos naturais do amadurecimento: a mudança de escola, o senso de responsabilidade, a saudade dos colegas. Além disso, as características engraçadas ou inatas dos quadrinhos passam a ser problematizadas, em busca de raízes e meios de superação. Isso significa que Mônica será confrontada ao bullying por seu peso, altura e tamanho dos dentes; Cebolinha enfrenta a dificuldade da dicção; Cascão encara a fobia por água e Magali combate a ansiedade que a leva a comer em excesso. Antes, estes dados constituíam traços definidores dos protagonistas. Agora, tornam-se sintomas de condições que precisam ser trabalhadas e resolvidas. O segundo filme mergulha numa jornada de autoaceitação, considerando com seriedade a saúde mental durante a infância. Os pais se envolvem na tentativa de ajudar os filhos, às vezes, de maneira desajeitada. Mas afinal, este percurso precisará ser feito pelas próprias crianças. 

A noção de que crescer pode ser dolorido se estampa numa sequência onde algo literalmente se rompe. Mônica (Giulia Benite), Cebolinha (Kevin Vechiatto), Cascão (Gabriel Moreira) e Magali (Laura Rauseo) formam uma corrente para pularem o muro e matarem aula. Ora, essa cadeia sólida de amizade se desmancha, produzindo o símbolo importante de um braço quebrado. A partir do dia em que os laços se desfazem, literalmente, nos muros da escola, a amizade também se afasta até que as feridas sejam sanadas e o grupo possa se rever de novo. Os alunos se confrontam a formas distintas de poder: o pequeno primo da Magali sofre bullying de um garoto forte e alto na escola, e Mônica perde ao medir forças com outro menino. As conquistas e a noção de status são efêmeras: o título de “rei da rua” surte efeito nulo na hierarquia em sala de aula, e a protagonista afastada dos vizinhos tem a impressão de ser substituída por outra garota. Se as coelhadas de Mônica eram mínimas, e tinham violência reduzida pelo efeito fora de quadro (nunca víamos as agressões no longa-metragem inicial), aqui elas sequer acontecem. Talvez seja justo dizer que o drama lida com a sensação de impotência dos quatro heróis face ao mundo adolescente e adulto. Por isso, não existe um vilão nuclear, função ocupada anteriormente pelo homem do saco. Mesmo os sujeitos de caras ameaçadoras revelam um bom coração adiante.

Turma da Mônica: Lições (2021) apresenta um tratamento estético de blockbuster, para o bem e para o mal. As imagens são incrivelmente polidas, com iluminação impecável e profundidade de campo sempre reduzida, além de uso cuidadoso de cores. As escolas são lindas, limpas, funcionais, enquanto as ruas deste bairro fictício transmitem a idealização de uma bolha cortada do resto do mundo. Os pais estão casados e felizes, e os oito adultos comparecem à reunião escolar, de mãos dadas, para ajudar os estudantes sancionados. Jamais saberemos ao certo em que trabalham estes pais, porém as famílias de classe média possuem recursos confortáveis. Em outras palavras, a representação realista das emoções dos pequenos se encontra com o retrato assepsiado das relações sociais. É claro que os gibis e graphic novels nunca exploravam estas questões a fundo, porém a adaptação toma liberdades que poderiam se expandir à pluralidade contemporânea. A imagem nítida, junto aos quartos arrumados e os uniformes impecáveis despertam a impressão de uma cidade cenográfica, distante da realidade de crianças e pais que frequentam as salas de cinema. Mesmo o Sansão, coberto de um piche “quase impossível de sair”, terminará sua jornada pessoal limpíssimo e belo. Há certo receio de sujar as mãos.

Em paralelo, o diretor Daniel Rezende aposta numa abordagem fortemente melodramática. A queda de Mônica é filmada em longos planos alternados, como se a garota fosse despencar de um precipício, ao invés de sofrer um acidente de pequenas proporções. A trilha sonora sentimental toma conta da banda sonora, ao passo que as crianças choram durante um número expressivo de cenas. O clímax é banhado por um tom operístico, com a orquestra entregando o máximo de pathos possível para uma realização pessoal intimista. Os aprendizados serão verbalizados, explicitados: “É possível crescer sem ser criança”, “Você não precisa ser diferente para ser único”. Desta maneira, a narrativa está longe da sutileza: cada significado é esmiuçado e reiterado para garantir a compreensão geral. Até a representação dos sentimentos adquire uma carga romantizada, emprestando o referencial de Romeu e Julieta para a separação e união dos amigos após o episódio da fratura. Felizmente, as crianças possuem um despojamento impressionante, entregando suas falas com uma naturalidade rara para o cinema infantil brasileiro — o principal mérito do diretor reside justamente no trato com os atores mirins. A divertida cena do teatro de bairro, reunindo Milena, Do Contra, Nimbus e outros personagens dos gibis, fornece enfim algum respiro e leveza diante de uma condução que corria o risco de se levar a sério até demais.

Vale notar o mérito dos criadores em escapar às principais armadilhas das sequências. Teria sido confortável efetuar uma repetição de tons e fórmulas, com variações mínimas. Outra possibilidade seria conceber uma aventura ainda maior. Ora, Lições proporciona uma experiência diferente, de proporções semelhantes àquelas de Laços. Ambas se completam: na produção inicial, descobrimos os heróis por fora, e na segunda, conhecemo-nos por dentro. O roteiro também atenua o incômodo romance infantil que soava forçado na história de 2019: os meninos e meninas têm questões suficientes a resolver consigo mesmos para priorizarem a paixão entre Mônica e Cebolinha. Resta uma forma competente de cinema voltado à família, abrindo-se a personagens negros e asiáticos, além de contextualizar o bullying e as manifestações da melancolia infantil. O retrato deste mundo atemporal, de aparência retrô, poderia ir muito mais longe — quem sabe os próximos episódios exploram novas configurações familiares, e crianças de níveis econômicos distintos. De todo modo, o respeito à inteligência do público nos leva a crer que uma elaboração verossímil da engrenagem social seria possível. Nesta trama, rompem-se os braços, os ciclos de opressão, os comportamentos viciados e compulsivos. Algo começa a se transformar nas figuras concebidas originalmente em 2D, tornando-se progressivamente complexas diante dos nossos olhos.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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