Crítica


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Sinopse

Após o suicídio de seu filho, Jorge decide viajar até Nova Iorque para conhecer o namorado dele.

Crítica

O início é triste, ainda que nada de especial. Um pai recolhe os pertences do filho, que, descobre-se em seguida, suicidou-se recentemente. Entre o lamento que era de se esperar e a descoberta de facetas do rapaz que até então o homem nem imaginava, ao mexer no seu computador acaba acionando uma chamada via um aplicativo de rede social, o que termina por conectá-lo com um outro jovem no outro lado do mundo. Quem atende a ligação tem mais ou menos da mesma idade do falecido, e o faz com um misto de ansiedade e resignação. Afinal, pensa que é o proprietário da conta que está lhe chamando, e não aquele senhor desconhecido, que até já havia ouvido falar a respeito, mas nunca tinha sido apresentado. A conversa entre os dois é ríspida, entre acusações e excessos impensados, resultado mais de reações do momento do que uma busca por respostas. Não se conhecem, não sabem a ligação de um ou de outro com aquele que está ausente, e são movidos mais pela curiosidade do que por um real interesse pelo outro. E no meio da discussão, o mais velho declara ter lido as conversas registradas no chat entre eles, e estranhado uma expressão que ambos usavam em abundância. Tu Me Manques. O que significa, o que representa para os dois? Um mistério que perpassa a narrativa, tornando o conjunto mais relevante e surpreendente do que a soma de suas partes.

Ainda que seja uma co-produção entre Bolívia e Estados Unidos, Tu Me Manques não é uma expressão nem em espanhol, muito menos em inglês. Vem da língua francesa, aquela já apontada como a dos apaixonados, e quer dizer “eu sinto sua falta”. Ou seja, você faz falta ao meu lado, é como se uma parte de mim tivesse partido, estou incompleto. Por mais que sejam usados no mesmo sentido, é diferente do poético “te extraño” espanhol, algo como “não te afastes a ponto de se tornar estranho para mim”, ou o objetivo “I’m missing you” inglês, ou “você se perdeu de mim”. Brasileiros e demais falantes da língua portuguesa são práticos, e criaram uma palavra específica para esse sentimento: “saudade”. Mas os franceses, talvez mais dramáticos, apontam para essa carência quase impossível de ser reparada sem a presença daquele que se foi. Basicamente o que acontece entre Gabriel e Sebastian (Fernando Barbosa, de Las Malcogidas, 2017). Afinal, esta é uma história de amor que pode ter seu triste desfecho anunciado no começo, o que, por outro lado, não a impede de almejar – e alcançar – um final feliz do seu próprio modo.

Muito do sucesso realizado pela narrativa está na escolha dos veteranos do elenco. Oscar Martinez, um dos grandes nomes do cinema latino-americano, capitaliza as atenções a cada aparição como o pai decidido a conhecer em morte o filho que manteve distante quando vivo. Filho de uma família tradicional boliviana, assim que tomou consciência da própria homossexualidade, Gabriel percebeu que não teria espaço numa cidade e país tão dominados por velhos costumes e tradições, uma religiosidade arraigada e uma preocupação desproporcional com a vida dos outros. É quando, sob a desculpa de continuar seus estudos – e facilitado pelo alto nível financeiro familiar – decide se mudar. E na capital do mundo – Nova Iorque – finalmente consegue ser quem é de verdade. Mas a história do filme escrito e dirigido por Rodrigo Bellott não é essa. Seu foco está no que veio depois do término. Quando o casal vivido por Gabriel e Sebastian não mais existe, pela pressão exercida pelos pais do primeiro. Ou seja, ex-namorado e pai, antes o mais distante possíveis, agora se veem juntos em nome da memória e das lembranças daquele que os uniu.

Ao chegar nos Estados Unidos, Gabriel caiu nos braços de Rosaura (a musa almodovariana Rossy De Palma), que também não tem mais filhos, e por isso “adota” aqueles dispostos a recorrerem a ela nas mais diversas situações. Jorge (Martinez, excelente na desconstrução de um patriarca transformado tanto pela perda como pelo amor) e Rosaura (De Palma é um frescor de compreensão e sensibilidade) dividem poucos momentos juntos, mas quando estão sozinhos em cena, o conjunto parece se elevar a um outro nível. Ambos passaram pela mesma dor, e o compartilhar os aproxima. Ela se torna uma espécie de guia desse homem que está mergulhando nas experiências do filho para tentar não apenas compreendê-lo, mas também se perdoar. O que faz desse todo um discurso diferenciado, por mais que a mensagem seja universal, é a forma como se apresenta. Gabriel, por exemplo, não é vivido por um ator, mas por três (Jose Duran, Quim Del Rio e Benjamin Lukovski). O verdadeiro (Luis Gamarra) só é visto por fotos, e rapidamente. São, portanto, as múltiplas interpretações para cada momento de uma existência. Elas se confundem tanto para quem dele se recorda como para os que apenas através desses relatos pensam ser possível conhecê-lo.

Bellott, autor do mais hermético e experimental drama romântico Perfídia (2009), retornou aos longas após uma década envolvido em curtas-metragens e outros projetos. Teve como inspiração para Tu Me Manques a peça teatral homônima que ele mesmo encenou alguns anos antes com imenso sucesso no seu país e no exterior. A linguagem dos palcos é levada para o ambiente audiovisual com imensa competência, driblando expectativas e confundindo perspectivas com habilidade e destreza, seja no formato escolhido como pelo discurso que opta por levar adiante. Ao espectador, é possível se orientar pela tortuosa jornada paterna, pelo sofrido renascer do amante abandonado ou, é claro, pelas reminiscências daquele que não soube lidar com suas angústias e terminou por ceder aos medos impostos por outros, tendo sucumbido ao desespero justamente quando tudo se mostrava pronto para um caminho há muito ansiado. Essa falta, portanto, é de todos, do que se foi e dos que ficaram. Mas, principalmente, dos que agora se deparam com essa história de entrega e superações, na esperança que tais lições sejam não apenas aprendidas, mas também replicadas como alerta e mensagem.

 

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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