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Sinopse

O jovem Pedro vive um momento complicado. Ele responde a um processo criminal ao mesmo tempo em que precisa lidar com a mudança da irmã, sua única amiga. Como forma de catarse, assume o codinome Garoto Neon e passa a se apresentar anonimamente na internet dançando nu na escuridão do seu quarto, coberto apenas por uma tinta fluorescente.

Crítica

A webcam é ligada. A luz do quarto apagada. No centro, um jovem magro, apenas de cueca, dançando, com o brilho do neon reluzindo na pele. Do outro lado da rede, vários comentários. Todos querem uma porção do corpo do rapaz. Um movimento lascivo, uma ajeitada nas partes baixas, uma empinada do traseiro. Ao contrário do que a cena sugere, Pedro tem vários fãs online, mas parece se sentir cada vez mais sozinho, isolado, justamente quando há alguém ao redor – ou lhe observando. Tinta Bruta, mais recente longa-metragem de Filipe Matzembacher e Márcio Reolon, retrata a solidão em tempos de rede sociais e parcos contatos online. Mais do que isso: mostra as dificuldades de uma conexão real entre as pessoas e como cada um lida com esse fato.

O protagonista é Pedro (Shico Menegat), um jovem que mora com a irmã mais velha, Luiza (Guega Peixoto). Ela está prestes a se mudar para Salvador, aproveitando uma oportunidade profissional. Ele, antissocial e recluso, ganha dinheiro com shows online e passa os dias em casa, com suas tintas e momentos de desinibição em frente às câmeras. Da porta da rua para fora, o mundo é mais sombrio. Sem amigos próximos ou até mesmo apoio familiar (a mãe morreu quando criança, do pai nunca se ouviu falar direito), Pedro ainda enfrenta um processo na justiça por agressão. Os detalhes de como isso aconteceu vão ser revelados aos poucos, mas pelo pouco que é dito, percebe-se que foi um caso de bullying e autodefesa.

As coisas começam a sair do eixo quando o protagonista descobre que tem um rival online. Leo (Bruno Fernandes) também brinca com as tintas em performances parecidas. Os dois se conhecem e firmam uma parceria para shows em conjunto. A diferença se dá em relação aos objetivos. Enquanto Pedro parece querer apenas sobreviver sem contato com o mundo externo, Leo busca juntar uma boa grana para ir estudar em Buenos Aires. Ele é dançarino, desenvolto não apenas na sua arte, como também extrapola o talento para sua personalidade – ou vice-versa. É comunicativo, cheio de amigos, falador, sensual para o mundo. O oposto de Pedro. Uma química inevitável surge, e da mesma forma vai além das apresentações e de algumas noites dormindo juntos. Mesmo que tudo tenha uma data para ter seu fim.

A dupla de cineastas não se limita a um texto recheado de ótimos e atuais diálogos sobre os relacionamentos modernos (como o pontual, mas não menos interessante, relato de uma amiga de Leo sobre o fim do namoro). É nos pequenos detalhes da câmera sobre o olhar dos outros que muito é dito. Pedro, com seus cabelos crespos e levemente compridos, o corpo esguio e uma personalidade que beira à androginia, causa efeito nas pessoas. Seja na vizinhança ou na rua, sempre há um olhar de julgamento sobre o rapaz. Às vezes, colocado da boca pra fora. Porém, na maior parte, assim como aqui fora, é o dito pelo não dito. É um preconceito velado, mas não menos doloroso ou impactante. São os pequenos traços de homofobia e machismo culturalmente fincados na sociedade brasileira que se revelam nos menores gestos.

Por isso mesmo, ainda mais interessante é o filme ter sido rodado e ambientado em Porto Alegre. Além de ser a cidade onde os diretores moram, a capital gaúcha vive um momento de desconstrução. Talvez até destruição, como exemplificado num diálogo sobre prédios que afundam a cada ano. A arquitetura da cidade parece sem vida, o que entra de acordo com a fotografia gélida utilizada para os ambientes externos. O sul, especialmente o Rio Grande, também é conhecido pelo histórico de pensamentos retrógrados. Por isso, não é à toa que os gaúchos retratados sejam um recorte do panorama brasileiro quando vem à tona temas relacionados ao universo LGBTQ.

Porém, apesar do aspecto melancólico e, por vezes, deprimente, é na sensualidade de seus personagens que Tinta Bruta mostra um caminho esperançoso. Se Pedro só consegue se soltar ao longo do filme em ambientes isolados, percebe-se os leves movimentos que o rapaz começa a ter para buscar uma vida fora de quatro paredes. Talvez o conselho da irmã para sair de casa todos os dias, “nem que seja por cinco minutos”, tenha causado algum impacto, mas é a presença de Leo que começa a tumultuar esta inércia do rapaz. Não é por uma simples paixão cega. É uma conexão real que vai além do amor romantizado e clichê. É o estranhamento causado pelo diferente, que logo se torna fascinação. É a descoberta de novos caminhos para seguir, ainda que traumas do passado insistam em bater na mente de Pedro.

A sexualidade explícita pode até chocar os mais moralistas, pois a nudez é algo natural em cena. Dos corpos expostos em pênis e traseiros despidos, ao beijo grego e o pau duro, entende-se que os diretores não querem chocar o espectador, apenas deixá-los à vontade com o corpo masculino – algo tão repreendido desde sempre no audiovisual brasileiro. É um movimento de libertação que vai dos personagens para fora da tela. Pois, entre o drama de fúteis relações virtuais, marginalização de homossexuais fora do padrão e a violência psicológica e física que vem do preconceito, Tinta Bruta entrega um grande tratado didático, mas longe do piegas, sobre se livrar das amarras impostas por uma sociedade reacionária. Ainda mais em períodos de retrocesso nacional, se mostra mais do que necessário para a desconstrução de mentes fechadas que necessitam, desesperadamente, de um pouco de neon para iluminar seus pensamentos.

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é crítico de cinema, apresentador do Espaço Público Cinema exibido nas TVAL-RS e TVE e membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista e especialista em Cinema Expandido pela PUCRS.
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