Crítica
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Crítica
O dramaturgo Stephen Karam resolveu adaptar a sua peça The Humans ao cinema e dirigi-la ele próprio – expediente bem comum ultimamente, vide Dúvida (2009) e Meu Pai (2020), entre outros tantos exemplos de filmes comandados pelos autores das peças nas quais se baseiam. E o realizador de primeira viagem não faz questão de minimizar a aura teatral do resultado cinematográfico, pelo contrário. Karam mantém evidentes os pontos de contato com o seu original. Para muitos, se trata de uma conveniência, de um modo seguro de estrear nos cinemas (ao se apoiar na linguagem que ele previamente domina bem). No entanto, assim como tinha acontecido em Meu Pai, a teatralidade deste longa-metragem lançado no Brasil diretamente em streaming é uma questão de estilo, de diálogo escancarado entre formas de contar histórias. Especialmente quando precisava se firmar como meio de expressão artística, o cinema renegou a dívida contraída com o teatro ao mimetizar algumas de suas lógicas de encenação – que evidentemente foram depuradas de maneiras específicas ao longo dos anos. Naquele momento, ser um filme “teatral” era considerado tão pejorativo que até hoje críticos se valem disso para supostamente desabonar produções. Pura bobagem. E The Humans é mais uma iniciativa que quebra a ideia de que a comunicação entre teatro e cinema prevê um servindo ao outro. Em cena por aqui, uma família que, como diria Liev Tólstoi no princípio de seu famoso romance Anna Kariênina, é infeliz à sua maneira.
Um dos grandes valores que o filme possui é o elenco. Talvez o único ator com pouca margem de manobra rumo à excelência é Steven Yeun na pele do “agregado” Richard, o marido da filha caçula, aquele que não nasceu no seio da família afetada por abalos comprometedores às estruturas dos relacionamentos. A esposa de Richard é Brigid (Beanie Feldstein, em mais um papel de destaque). Os dois estão de mudança para um apartamento novo no famoso bairro de Chinatown, em Nova Iorque, nos Estados Unidos. É nesse cenário que a trama acontece e, não por acaso, ele é uma projeção física das questões que ameaçam a harmonia familiar de Brigid (da antiga e da nova família). Mesmo que seja bem localizado e atenda às expectativas do casal, o novo lar é repleto de mofo, infiltrações, vazamentos e rachaduras a serem reparadas. Se falta sutileza à relação simbólica que o cineasta estabelece entre o ambiente e seus habitantes/visitas, sobra leveza na forma como ele cria as conexões entre as tensões humanas e as “respostas” da residência – como as luzes gradativamente queimadas. A precariedade compartilhada entre o cenário e a gente poderia descambar para o horror, com as paredes e o teto entrando violentamente em compasso de deterioração para sinalizar turbulências. No entanto, Stephen Karam enfatiza as marcas impostas devagar pelo tempo, assim não se atendo a implosões repentinas.
Brigid é uma anfitriã ansiosa para agradar os pais e a irmã mais velha. Beanie Feldstein se sai muito bem como essa nova dona de casa aflita pela aprovação paterna/materna que entra em colapso de modo supostamente desproporcional diante de pequenas reprimendas e comentários. É perceptível que um passado de acúmulos motiva essas aparentes respostas incompatíveis. Os pais dela são Erik (Richard Jenkins) e Deidre (Jayne Houdyshell), casal que deixa escapar nas entrelinhas as frustrações, os senões e mesmo os entraves insolúveis, provavelmente decorrentes de uma união recheada de questões mal resolvidas. The Humans é muito bem-sucedido nessa articulação de não ditos em prol de um panorama complexo que nos leva a imaginar a bagagem prévia dos personagens para além das situações apresentadas. E os veteranos Richard Jenkins e Jayne Houdyshell são os principais destaques desse elenco notável. Ele, compondo seu personagem por meio de uma gama de hesitações e indícios de uma hostilidade motivada por, talvez, anos de desapontamentos pessoais. Ela, sobressaindo em meio aos colegas não menos que ótimos em cena ao interpretar a mulher que evidentemente se sente fragilizada diante da emancipação das filhas e da indiferença mal maquiada do marido. Enquanto isso, Amy Schumer vive a primogênita adoecida/triste e June Squibb é a avó degradada pela doença degenerativa.
Há uma dinâmica muito bem tecida de simetrias entre os personagens. Brigit se ressente tanto da mãe, pois nela encontra pontos de reconhecimento desagradáveis; Aimee (Amy Schumer) antevê uma dependência em certa medida parecida com a experimentada por Momo (June Squibb); enquanto Richard pode ser tragado para uma lógica cotidiana na qual a única forma de se encaixar é ser semelhante a Erik. E Stephen Karam situa esse emaranhado indigesto de associações e identificações num ambiente onde a resignação é uma contenção insuficiente ao represamento das convenções. A residência, vista como aspecto fundamental da nova fase para o casal que começa uma vida conjugal, tem de suportar diversas infiltrações de ordem literal e simbólica para não ser demolida pelos erros cometidos pelos antecessores. Stephen Karam transita habilmente pelos cômodos ora iluminados, ora escuros, evitando o desgaste por conta de uma encenação que utiliza engenhosamente a repetição como aliada. A ênfase dessa teatralidade permanece nos personagens, no que eles revelam e, principalmente, naquilo que se esforçam para não demonstrar. Aos poucos, o jogo de aparências dá lugar a verdades inconvenientes e a concessões às políticas da convivência que sucumbem à necessidade de desabafar. Uma bem orquestrada tragédia cotidiana que tem mais de existencial do que de melodramática, na qual a família, considerada a célula mater da sociedade, é ao mesmo tempo o ninho seguro e o olho do furação.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Marcelo Müller | 8 |
Daniel Oliveira | 6 |
Chico Fireman | 4 |
Alysson Oliveira | 8 |
Leonardo Ribeiro | 6 |
MÉDIA | 6.4 |
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