Sinopse
Aos 81 anos, Anthony mora sozinho em seu apartamento em Londres, tendo dificuldade para conviver com os cuidadores contratados para lhe auxiliar cotidianamente. Sua filha, Anne, decide mudar-se para Paris com um novo amor. Coisas estranhas começam a acontecer, ao ponto de Anthony questionar a confiabilidade de sua memória.
Crítica
“O que você vai fazer em Paris? Lá eles nem falam inglês!”. É com essa declaração, num misto de espanto e insatisfação, que Anthony reage ao ouvir da filha que ela está de mudança de Londres, pois pretende ir morar na capital francesa junto com o novo marido. Como resultado, ele ficará sozinho, algo que não é fácil na idade em que está, já passando dos 80. Por isso, há dois caminhos a serem seguidos: ou aceita uma das tantas cuidadoras que Anne está tentando arranjar, ou ela se verá na obrigação de colocá-lo em um asilo para idosos, uma casa de repouso que possa, enfim, assumir a responsabilidade de olhar por ele durante a ausência dela. Como se esse dilema não fosse conflitante o suficiente, há ainda uma outra complicação em torno disso: o Alzheimer tem se apoderado cada vez mais daquele homem, que já foi tão forte e poderoso, e agora se vê, em determinados momentos, reduzido a não mais do que uma criança necessitando de ajuda – e que, mesmo assim, se recusa a admitir tal verdade. Em Meu Pai, tão difícil quanto aceitar os fatos é discernir quais deles são de fato reais, e quais não passam de mera fantasia. Uma engenhosa mistura comandada com habilidade pelo diretor Florian Zeller, e executada à perfeição pelos não menos que geniais Anthony Hopkins e Olivia Colman.
A absoluta maioria dos filmes que tratam da questão da perda da memória o fazem a partir da perspectiva daqueles ao redor dos acometidos pela doença. De dramas como Longe Dela (2006) a romances como Diário de uma Paixão (2004), todos possuem em comum o fato de mostrar o impacto desse retrato nas reações de maridos e esposas, amigos e filhos, colegas e vizinhos. Talvez essa seja a principal diferença de Meu Pai: tudo é percebido tendo como ponto de vista o olhar do protagonista, inclusive suas confusões, impressões e identidades. A filha tanto pode ser a mulher de mais de quarenta anos que agora se apresenta em seu socorro, como uma garota muito mais jovem e idealista. A cuidadora pode ser tanto uma estranha, como também a outra filha, perdida tempos atrás em um trágico acidente. O genro que se apresenta com respeito e distanciamento também pode se revelar agressivo e impiedoso. Sem ter no que se agarrar dentro da própria mente, qualquer registro é passível de dúvida e questionamento.
Anthony Hopkins faz de seu xará um dos maiores desafios de toda a sua brilhante carreira – e entrega um desempenho tão impressionante quanto singelo. No começo, o que está em cena é a força e a autoridade que lhe é conhecida de muitos dos seus trabalhos. E faz todo sentido, pois quem o espectador primeiro encontra é uma pessoa sólida, dona do seu nariz, que sabe bem onde mora e está disposto a lutar pelo direito de naquele lugar permanecer. Não aceita a ideia da filha de tirá-lo de lá, e muito menos cogita a possibilidade de uma pessoa desconhecida dividir aquele mesmo espaço com ele. Se a menina que deu vida não pode mais estar por ele, tudo bem, seguirá sozinho. Mas será que consegue? Aos poucos, essas crenças, que eram tanto dele quanto da audiência, começam a ser desconstruídas. Uma simples ida à cozinha pode ser suficiente para ouvir uma voz estranha no outro cômodo, e ao voltar para sala, se deparar com alguém que nunca viu antes – ou, ao menos, alguém que ele pensa nunca ter visto antes. E quando não se pode ter certeza mais nem de si mesmo, em quem depositar sua confiança?
Da mesma forma como Hopkins mergulha em uma figura tão austera quanto frágil, Olivia Colman está presente para oferecer a solidez que ele necessita. O problema, no entanto, é que nem sempre o homem que a criou é capaz de reconhecê-la. Por vezes, é Olivia Williams (O Sexto Sentido, 1999) que surge em seu lugar, e em outras essa aparece como uma enfermeira. O mesmo se dá entre o genro – seria Rufus Sewell (Judy: Muito Além do Arco-Íris, 2019) ou Mark Gatiss (A Favorita, 2018), e ao se decidir por um, cabe ao outro trabalhar no hospital ou estar ali apenas por acaso? – e também entre a garota que vem para entrevista de emprego (Imogen Poots): é, de fato, uma recém-chegada nesse drama particular, ou estaria ele mais uma vez diante da filha que há muito perdeu? Nesse turbulento vai e vem, é Colman quem se destaca, seja pela constância que demonstra, a determinação em fazer o certo e a fragilidade que, mesmo em instantes mínimos, deixa transparecer (o pedido de “obrigado”, ao qual ela responde com um meio sorriso, é um dos momentos mais bonitos de toda a trama). São adultos, gigantes, porém diminuídos a condições ínfimas pela incapacidade de enfrentar o inescrutável.
Meu Pai é o longa de estreia do francês Florian Zeller – o que deixa o resultado ainda mais surpreendente. No entanto, não é a sua primeira visita a esse universo. A história fora primeira concebida como uma peça teatral – e pelo fato da ação se passar quase que por inteiro num mesmo ambiente (o apartamento de Anthony), tais resquícios não podem ser negados. No entanto, que se deem os devidos créditos: a edição de Yorgos Lamprinos (vencedor do César por Custódia, 2017) e o roteiro, escrito pelo cineasta em parceria com Christopher Hampton (dono de um Oscar, conquistado por Ligações Perigosas, 1989), são mais do que suficientes para darem conta de oferecer ao conjunto um caráter inovador e envolvente. Tanto é que se distancia também da versão francesa dessa mesma história – A Viagem de Meu Pai (2015), que por mais que compartilhe do mesmo argumento, soa como uma obra completamente distinta. É como um quebra-cabeças, montado com paciência e determinação, que se constrói um dos filmes mais importantes sobre o tema, não só por tudo que evidencia na tela, mas, acima de tudo, pela compreensão que permite acessar por meio do que é não dito, mas muito sentido.
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Filme muito bom que retrata a fragilidade do ser humano, mostra que a prepotência não é o melhor caminho e que os dias tem que serem vividos um de cada vez, porque no final é o que nos resta!