Silêncio de Rádio

Crítica


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Sinopse

Por conta de uma enorme pressão política, Carmen Aristegui, uma das principais vozes do jornalismo mexicano independente, é demitida. No dia seguinte, uma enorme mobilização social pede a retratação da emissora.

Crítica

Diante de qualquer filme, e mais especificamente dos documentários, é importante responder a três questões: Quem fala? De qual ponto de vista? Para quem? No caso de Silêncio de Rádio (2019), quem fala é a própria diretora, Juliana Fanjul, posicionando-se enquanto personagem e narradora desta história. Ao acompanhar a trajetória de Carmen Aristegui, jornalista demitida de uma das maiores redes nacionais de rádio por revelar escândalos de corrupção envolvendo o presidente, a cineasta assume a função de porta-voz e cúmplice da protagonista. Não há qualquer diferença de postura entre ambas: Fanjul registra o dia a dia desta mulher com evidente admiração, reforçando a luta para disseminar notícias apesar de frequentes ameaças de morte e intimidações legais. O projeto oferece à personagem marginalizada um espaço suplementar para propagar seu trabalho. Há um gesto de militância na união entre jornalismo tradicional e cinejornalismo investigativo. A questão do ponto de vista se traduz na denúncia: para a criadora, é preciso difundir com clareza os abusos sofridos pela imprensa mexicana não alinhada ao governo.

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Por isso, não se trata de propor uma reflexão repleta de nuances, escutando diversos lados da equação, ou mesmo de investigar as causas dessa corrupção. O filme fornece uma tese pronta: o México se transformou num governo autocrático durante a gestão Peña Nieto, adotando práticas típicas dos cartéis que prometia combater. A consequência desta postura seriam as dezenas de assassinatos de vozes opositoras, sem qualquer forma de julgamento. Por isso, apenas duas pessoas se comunicam de fato ao longo do filme: Carmen, presente em cerca de 90% das imagens, e a cineasta, através de longos discursos em off. Por um lado, a diretora grita a existência de um regime caótico e perigoso, dominado por corporações perigosas numa democracia de fachada. Por outro lado, ela o faz através de uma estética curiosa: enquanto a câmera na mão treme e capta o máximo de imagens possível em tom de urgência, a narração de Fanjul adota um estilo introspectivo, sussurrado. Jamais uma denúncia política tão assertiva foi feita por uma voz tão monocórdia, baixa, etérea. Pode-se cogitar que o projeto busque alguma forma de equilíbrio ao sobrepor tons tão díspares. De todo modo, ele desperta a atenção pelo conteúdo, ao invés da forma.

O tópico leva à terceira questão, a mais difícil de responder, neste caso: para quem fala a obra? Esta se torna a problemática mais comum em filmes-denúncia, do tipo que propaga alguma situação catastrófica. É lógico pressupor que o discurso se comunique muito bem com o público predisposto a um olhar crítico aos últimos governos mexicanos. Em outras palavras, o olhar de esquerda deve ser bem recebido pela esquerda, reconfortada ao encontrar uma reafirmação de suas ideias. No entanto, será que algum espectador de pensamento contrário estaria disposto a assistir à obra de pensamentos tão cristalizados e unívocos? Ou então, dando um passo atrás: o público direitista estaria disposto a ver um documentário, sobretudo progressista? Talvez o discurso se destine ao público estrangeiro. As apresentações da cineasta falam sobre “aqui, no México”, como se seu interlocutor não conhecesse a realidade representada. Existe igualmente a possibilidade que este cinema engajado encare o discurso como uma forma de “a quem interessar possa”: ele dispara aos quatro ventos acusações muito importantes sobre a política local, e quanto mais pessoas puderem escutar estas ideias, melhor, onde quer que estejam, e quantas sejam. O filme se torna uma ferramenta utilitária em tempos de disputa de narrativa: enquanto os proprietários de grandes empresas detêm o controle sobre a maior parte das imagens veiculadas, este projeto modesto se esforça para multiplicar o alcance das palavras de Carmen Aristegui.

Infelizmente, ao efetuar um cinema tão corajoso em termos políticos (a diretora afirma estar sendo perseguida durante as filmagens), o cuidado de produção e acabamento se torna secundário. Diversas cenas possuem som e iluminação deficientes, sobretudo quando Carmen se encontra em meio a uma reunião com a equipe de seu novo veículo jornalístico. Nestes instantes, percebe-se que a equipe cinematográfica não dispõe de um boom para captar o som de todos. Durante os protestos noturnos, não se encontra um bom enquadramento em meio à multidão, enquanto a iluminação praticamente inexiste. A câmera enfrenta dificuldades de posicionamento em corredores apertados e dentro do carro. Em determinada cena, é a protagonista que convida o diretor de fotografia a chegar mais perto, para poder fechar um portão. Há certo teor de amadorismo, ou quem sabe de cinema-guerrilha, nesta forma apressada de arte a qualquer preço. Seria uma forma de se assemelhar ao jornalismo ousado de sua protagonista? Ora, nada indica que as reportagens efetuadas pela jornalista pós-demissão da emissora sejam precárias em termo de produção ou acabamento.

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Silêncio de Rádio também pode ser questionado pela dependência excessiva das narrações da cineasta, explicando passagens da política mexicana. Talvez o recurso busque compensar a ausência de imagens capazes de explicar este percurso por si mesmas. No entanto, vale ressaltar algumas formas simples, porém eficazes de poesia: quando se menciona a cultura da corrupção, mostra-se uma vendedora ambulante perambulando pelas avenidas da Cidade do México, em representação da desigualdade de classes. Quando se aponta a hipocrisia desses ladrões “do bem”, aposta-se nas imagens de procissões religiosas com Cristos crucificados pelas ruas da cidade. O filme ganharia em profundidade caso apostasse mais nestas fricções e analogias. Mesmo assim, em seu estilo direto e possivelmente ingênuo (por não compreender o potencial político/subversivo da linguagem cinematográfica, apostando apenas no conteúdo), o resultado cumpre o objetivo de disseminar uma realidade escondida a respeito de atos de tirania institucionalizados. Seria interessante descobrir que outras vozes progressistas ousam enfrentar os poderosos do país. Pelo ponto de vista de Fanjul, temos impressão de que Carmen e sua pequena equipe constituem os únicos Davis combatendo uma multidão de Golias.

Filme visto online no 25º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em setembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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