Crítica

Não é mera coincidência que as melhores atuações da carreira de Al Pacino tenham sido sob a direção de Sidney Lumet. O leitor pode argumentar que o ator teve seu melhor momento e personagem marcante na trilogia O Poderoso Chefão, capitaneada por Francis Ford Coppola. E não é possível discordar disso inteiramente. Aliás, na segunda parte da trilogia, lançada em 1974, Pacino está brilhante. No entanto, os Godfather de Coppola não são shows de um homem só. O elenco como um todo é incrível, com destaque na primeira parte para Marlon Brando, onipresente, e na segunda, para Robert De Niro – com Pacino correndo atrás, bastante próximo. Sabendo disso, fica bem fácil entender a importância de filmes como Serpico (1973) e, mais tarde, Um Dia de Cão (1975) na carreira de Al Pacino. Estes são shows de um homem só. A partir dali, não restavam dúvidas sobre o talento do jovem ator - indicado ao Oscar por sua performance.

Além disso, Serpico serve como exemplo de como Sidney Lumet conseguia ser, ao mesmo tempo, um verdadeiro autor e um hábil operário da indústria cinematográfica. O projeto do longa-metragem caiu no colo do cineasta pouco antes das filmagens, depois de John G. Avildsen (futuro diretor de Rocky, 1976, e Karatê Kid, 1984) ter desistido do trabalho. Com roteiro de Waldo Salt e Norman Wexler, baseado no livro de Peter Maas – que, por sua vez, baseou-se em fatos reais - Serpico acompanha a trajetória do policial honesto Frank Serpico (Pacino), que tenta de todas as formas não cair na malha de corrupção pela qual está tomada a polícia de Nova York. Depois de pular de distrito em distrito, o oficial precisa de ajuda para desmascarar as maçãs podres que contaminam o serviço policial. Logicamente, a tarefa não é fácil, visto que quem deveria servir e proteger são exatamente os que estão agindo fora da lei.

O longa-metragem é interessante por colocar o dedo na ferida e mostrar de forma bastante clara o abuso de poder e as maracutaias que acontecem dentro da polícia. Desde coisas pequenas, como um policial desviar o olhar para algumas irregularidades em troca de um almoço grátis, até coisas grandes, como furtar-se em ajudar um companheiro ou receber propina de ladrões e vigaristas. É neste universo – nada fantasioso – que trabalha Frank Serpico, um homem que sempre sonhou em ser policial e que percebe, ao chegar ao seu objetivo, que a imagem que ele fazia da profissão era bastante diferente da realidade.

Serpico começa muito bem. Em um prólogo recortado de um futuro próximo, o policial interpretado por Al Pacino acaba de ser baleado – e surge como uma surpresa nos primeiros minutos que as suspeitas do incidente potencialmente fatal recaiam sobre os próprios parceiros de trabalho de Frank. É lógico que Serpico fez ou viu algo que causou desgosto nos outros policiais. Então, somos levados ao início de tudo, nos momentos em que Frank entra na policia e presencia toda a sujeira que lá existe.

O trabalho de Al Pacino é fantástico, principalmente quando sabemos que o filme foi gravado do fim para o começo. O visual cabeludo e barbudo do ator foi sendo aparado cada vez que a história aproximava-se do seu início. Portanto, é necessário um preparo muito grande para conseguir retroceder totalmente em um papel, iniciando de forma segura e voltando para a ingenuidade dos primeiros dias. Só por isso, Pacino já mereceria elogios. Mas sua performance vai muito além. O ator consegue transmitir toda a frustração e raiva que tomam seu personagem por simplesmente não conseguir fazer seu trabalho como gostaria. Se é ruim viver seus dias fazendo algo que não se gosta, muito pior é estar no emprego certo e ver seus sonhos desmoronando sem nada a se fazer.

Sidney Lumet constrói de forma hábil a desconstrução do sonho de Serpico, mostrando o policial como um homem de gostos simples e bastante voltado para a família, sem conseguir constituir sua própria ao não se desvencilhar dos problemas do trabalho. Sem amigos na força e sem oportunidades para crescer na profissão devido a um mal entendido, Serpico é um refém da realidade imposta a ele. Felizmente, ainda existiam policiais honestos na força e, com a ajuda destes poucos, Frank consegue paulatinamente colocar a cabeça por cima da lama e respirar um pouco.

Além de mostrar a sujeira da polícia norte-americana nos anos 70, Serpico passa uma mensagem de coragem, visto que o seu protagonista nunca sucumbe às investidas dos companheiros, sempre recusando qualquer tipo de conduta errônea. Em certo ponto do filme, Serpico resume toda a questão: “se estes policiais usassem toda a energia que usam em contravenções para patrulhar a cidade, não existiriam mais crimes em Nova York”. Perfeito, senhor Serpico. Muito bom, senhor Lumet.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista, produz e apresenta o programa de cinema Moviola, transmitido pela Rádio Unisinos FM 103.3. É também editor do blog Paradoxo.
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