Crítica


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Sinopse

Depois de ir à mercearia comprar farinha a pedido da mãe, Zuri descobre que é capaz de voar.

Crítica

Dentro de uma ideia de melodrama social, o cinema brasileiro dos últimos tempos tem apresentado atenção especial à precarização da existência de crianças/jovens negros nas grandes cidades. Essa recorrência pode ser explicada por diversos fatores, mas talvez os principais deles sejam: 1) o clamor por histórias que ofereçam um recorte plural da nossa coletividade; 2) a ascensão de jovens realizadores(as) negros, fruto desse movimento de conscientização e, em vários casos, de políticas afirmativas que visam reequilibrar as forças do cinema brasileiro; 3) a infeliz repetição de crueldades reais envolvendo crianças negras brutalizadas/assassinadas. Sem Asas parte da filmagem de estudantes afirmando o que desejam para o futuro. Zuri (Kaik Pereira) se engana ao tentar expressar a vontade de ser um super-herói e fala: “quero ser colete à prova de balas”. Se trata de um ato falho provocado pelo entorno que provavelmente desde muito cedo aproxima o menino dos conceitos da violência crua e realista que exacerba a combatida pelos paladinos dos quadrinhos. A elipse (supressão de tempo entre pontos da trama) nos conduz à mesa em que ele estuda matemática com o pai.

A conversa na cozinha engloba a mãe (Grace Passô) que frita coxinhas de galinha – ela é microempresária. Em meio ao diálogo sobre a necessidade de estudar para ser alguém, a cineasta Renata Martins desenha um contexto familiar harmônico e sintomático de uma classe trabalhadora (negra) acintosamente atravessada pela estupidez dos sistemas hostis à sua existência. A naturalidade das interlocuções é quebrada eventualmente por alguma entonação mais dura, mas nada que comprometa o resultado dessa dinâmica que interliga a concepção dos mais velhos e os anseios do menino. Em determinado ponto do curta-metragem, a mãe pede ao filho que vá à mercearia comprar farinha de trigo, gesto simples que em princípio não carregaria naturalmente maiores implicações. Mas, levando em consideração que Zuri é um menino negro e periférico, a simples jornada para auxiliar a personagem de Grace Passô pode ser repentinamente transformada em tragédia. E a diretora é habilidosa ao sugerir, ao não sublinhar a expectativa gerada automaticamente pela nossa conjuntura social.

Renata utiliza um símbolo recorrente para, ao mesmo tempo, denotar o aspecto lúdico da infância nas periferias brasileiras e simbolizar ideias de liberdade. A pipa perseguida por Zuri entra ali exatamente como convenção, mas funciona dentro do que a realizadora propõe enquanto diagnóstico. Aliás, é interessante como Sem Asas dribla dificuldades com criatividade, vide a sugestão de que o cachorro da vizinha é um empecilho para o menino resgatar a pipa. Quando vemos o animal, ele está mais para passivo do que agressivo. No entanto, o latido retumbante que invade o plano fechado no rosto do garoto recomenda cuidado ao entrar no terreno alheio. Outro ponto que chama atenção é a supressão visual das figuras dos agressores. A cineasta opta por não mostrar os policiais que dão uma dura na criança. Os fardados permanecem extracampo, invadindo o quadro com suas vozes agressivas. Se trata de um gesto potente de contra-ataque, já que os agentes da lei que funcionam tantas vezes como exterminadores da população negra ao Estado são fisicamente invisibilizados.

Não mostrar os policiais também causa despersonalização. Os algozes não são A ou B, mas a força repressora que deveria proteger. Sem Asas faz um recorte sintomático do perigo que a população negra/periférica corre ao realizar coisas banais – como comprar farinha ou sair para procurar o filho que não voltou para casa. Grace Passô (mãe), Kaik Pereira (filho) e Melvin Santhana (pai) desempenham seus papeis com sutilezas. E esse trabalho conjunto do elenco resulta na sensação de que há um afeto transformador entre os personagens daquela família parecida com tantas da realidade brasileira. Renata Martins lança mão da fantasia para mostrar o amadurecimento forçoso do menino confrontado pelo lado feio e discriminatório do mundo. O “ganhar asas” é também uma convenção evidentemente desgastada, mas aqui ganha contornos bonitos pelo colorido do artefato que insinua o empoderamento de quem foi precocemente obrigado a se relacionar com a brutalidade humana. O pai abordado pela polícia nada mais é do que uma projeção desalentada desse filho.

Filme visto no VI Cine Jardim: Festival Latino-Americano de Cinema de Belo Jardim, em agosto de 2021.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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