Crítica

Nada é mais certo do que aquele ditado que afirma que, de perto, ninguém é normal. Cada um possui suas manias, excentricidades e particularidades. Ao mesmo tempo, entretanto, se tomarmos outro ponto de vista, chegaremos à conclusão de que sim, pode-se dizer que somos todos iguais, já que tanto na superfície quanto no mais profundo âmago temos nossas similaridades. Aparências que revelam instintos, desejos e ambições muito próximos. Nascemos sozinhos, mas não queremos morrer e – principalmente – viver isolados dos demais. Queremos amar e, acima de tudo, sermos amados. Mesmo que a mais bizarra loucura predomine nosso cotidiano de tal forma que seja, assim, natural. Pois, por mais estranho que possa parecer para alguns – quiçá para a maioria – sempre haverá aquele que a entenderá, e não só isso, a aceitará. E então o par estará feito. A partir desse ponto, tudo é válido para que ele se eternize. É sobre isso, e muito mais, que fala Secretária.

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Lee Holoway, nossa personagem-título, logo no início da história é mostrada sendo liberada de um hospital psiquiátrico. Primeiro sinal: por que estava lá? Depois, como qualquer pessoa em situação similar, sai à procura de um emprego. Encontra uma oportunidade no escritório do Sr. Grey – este sendo o original, e não essa cópia genérica que tem feito sucesso nos últimos tempos – um advogado que precisa de alguém para auxiliá-lo no escritório. Lee não só se candidata à vaga, como a consegue. Segundo sinal: por que Grey precisa tanto de secretárias – já que trabalha sozinho – a ponto do anúncio de “precisa-se” ser fixo, logo abaixo do letreiro com seu nome, bastando um acender de luzes para torná-lo ativo? Quando a novata entra no local, a antiga funcionária ainda está se retirando, aos prantos. E há sinais de que outras passaram pelo mesmo local recentemente.

O Sr. Grey não é uma pessoa fácil. Metódico, lento, reservado, adota procedimentos muito especiais no seu dia a dia. Não usa computadores, todo seu material de expediente é redigido em máquinas de escrever. Trabalha cuidadosamente num orquidário pessoal, e revê neuroticamente todas as suas anotações, além de procurar pausadamente por erros nas cartas que sua subalterna lhe entrega. O mais curioso – e é nesse momento que algumas questões começam a ser solucionadas – é que serão justamente essas peculiaridades do comportamento do Sr. Grey que tanto irá atrair Lee, e essa atração se fará notar também pela percepção dele.

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Desenvolvendo-se de um certo ponto até mesmo óbvio – afinal, estamos estamos diante de uma comédia romântica, e como tal os parâmetros do gênero serão respeitados: os pares são apresentados no primeiro ato, sofrem adversidades diversas no segundo e terminam juntos no terceiro. Todo mundo sabe disso, não é para adivinhar como irá acabar que vamos assistir filmes assim, mas para presenciar o desenrolar da ação, ver como a situação proposta irá se comportar até o já sabido final. E é justamente neste aspecto que Secretária revela seus méritos.

O filme só ganha quando seus pequenos segredos começam a ser elucidados. Para quem ainda não havia percebido, as cenas seguintes tratam de ser bem claras sobre a natureza dos acontecimentos: Lee é masoquista, enquanto Grey é um sádico. Os dois são párias, mas que se reconhecem e se aproximam por suas peculiaridades. São exceções num mundo de comuns, e o processo de aceitamento mútuo será tão difícil quanto complicado. E, principalmente, baterá de modo muito mais forte e insistente neles próprios do que nos que estão ao seu redor. Nesse ponto, Secretária confirma sua maturidade ao mostrar os dois personagens principais conduzindo suas existências perturbadas em busca da aceitação – um se abrindo, o outro se refugiando – para no fundo irem ao mesmo local, o bem estar. É um filme adulto, feito para uma plateia madura. Mantendo-se à altura dos conceitos abordados, satisfaz seus espectadores pela qualidade da mensagem que passa e pela forma satisfatória em que apresenta sua resolução.

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Como se isso não fosse o bastante, ainda temos um dupla de atores em perfeita sintonia: Maggie Gyllenhaal deu aqui uma das primeiras demonstrações de seu talento, entregando-se a um tipo fora dos padrões com intensidade e frescor; e James Spader, em seu melhor trabalho desde Sexo, Mentiras e Videotape (1989) – ele parece ter nascido para esse tipo de personagem. As atuações de ambos são tão ferozes e dominam cada cena com tanta garra que conseguem o mérito de nos abster da fina cama de superficialidade que naturalmente existe entre público e tela, fazendo-nos crer que é possível que estas figuras sejam não apenas reais, como conhecidas de longa data que só agora estamos descobrindo mais a fundo, após um olhar cuidadoso. Soma-se a um roteiro particularmente feliz e a direção cuidadosa de Steven Shainberg e temos em Secretária uma das melhores surpresas de 2002, algo que já se anunciava com as mais de 40 indicações e/ou premiações que a obra recebeu em associações como o Globo de Ouro, National Board of Review e Independet Spirit Award, festivais como Sundance e o reconhecimento do sindicato de críticos de cidades como Chicago, Boston e Flórida.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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